A demonstração de minha personalidade, irmãos meus, exige a
confidência de meus sofrimentos íntimos como homem, e de minhas
alegrias espirituais como espírito.
Tenho também que precisar a
diferença que existe entre minha revelação anterior e minha
revelação atual. Atribuamos a Jesus homem as paixões do homem;
atribuamos a Jesus mediador a calma bebida no seio das instituições
divinas, a força do sacrifício, a resignação do mártir; atribuamos
a Jesus homem os impulsos do coração para as atrações da natureza
humana; atribuamos a Jesus mediador a força repulsiva contra toda a
impureza.
Atribuamos a Jesus homem o desgosto para com a humanidade
perversa e covardemente delinqüente; mas vejamos a Jesus mediador
proclamando-se o irmão e amigo dos culpados, o consolador dos aflitos,
o amparo dos desgraçados, a arca aberta dos pobres, o consolo de todos
os arrependidos.
Coloquemos neste livro, sob os olhos do leitor, a dupla
condição de Jesus como espírito elevado e como criatura carnal,
para fazer compreender bem a laboriosa coragem do espírito em luta com
a matéria, e livremos a justiça divina das trevas com que a rodeou a
ignorância humana, para elevar o espírito do homem à altura de nossa
intervenção.
A natureza de Jesus, irmãos meus, é vossa própria
natureza. O espírito de Jesus define a emancipação de uma criatura
nova. O favor de Deus não existe, a denominação de privilegiado não
tem sentido algum.(1)
A desproporção das forças encontra-se na
relação com a ancianidade e o trabalho de cada um. A dependência
produz a dependência e a liberdade nasce de uma vitória definitiva da
natureza espiritual sobre a natureza animal. A perfectibilidade faz-se
mais rápida quando se consegue dominar a natureza animal; mas a
perfeição encontra-se tão-somente em Deus, e todos os seres, tendo
sido criados por Deus, têm direito a esta luz.
A decadência do
espírito é apenas momentânea, pois a lei do progresso arrasta consigo
todas as individualidades para um objetivo de engrandecimento, mediante
o equilíbrio geral das criações. A indiferença e a depressão são
ocasionadas pela dispersão e pelos contatos malsãos. Os mundos
juvenis, como a Terra, entram no período de seu desenvolvimento moral
quando a aproximação das idéias se produz com o regresso proveitoso
dos espíritos desligados da matéria, aos quais se lhes deu a faculdade
de retornar para acelerar os movimentos e a vida do espírito nas
condições da escravidão humana. Os Messias não tornam já a ser
chamados para a vida material; porém têm a suprema honra de dirigir
aos pequenos Messias.
O número dos Messias aumenta progressivamente, de
forma que eles, multiplicando-se, injetam por todas as partes, inoculam,
espalham por todas as partes a luz, e o período de desenvolvimento, de
que já falamos, se efetua forçosamente.
O avanço dos mundos indica o
avanço das individualidades.
A energia, a luz espiritual, a ciência universal se amparam
mutuamente e produzem o amor, a força, o sentimento religioso, a
revelação. A desmaterialização do espírito se efetua com o
desenvolvimento de sua razão. A natureza animal vai cedendo pouco a
pouco ante a natureza espiritual, quando domina a razão e o progresso
é notável. O progresso recebe maior força das luzes divinas quando o
espírito alcança maior elevação, abandonando a sensualidade da
matéria e acumulando honras sobre si mesmo pelo acordo da razão com a
fé.
Aproximo-me de vós, irmãos meus, livre para sempre da natureza
carnal, mas sofri, como vós, as humilhações e os desesperos de dita
natureza, e se minha vida de Messias foi gloriosa em virtude das obras
do Messias, as alianças, os desenganos do homem foram realmente
cruéis. Minhas culpas me proporcionaram remorsos e os sofrimentos
fizeram nascer em mim dúvidas e enganos. Se minha vida de Messias
saboreou as delícias do amor humano em suas dependências espirituais,
as ternas afeições do homem viram-se esmagadas sobre suas carnes e o
espírito triunfou na luta, mas tão-somente depois de largos suplícios
e feridas profundas.
Se, finalmente, a luz do Messias viu-se turbada
pelas trevas da natureza humana, a luz do espírito pôde elevar-se
acima delas, devido à sua completa liberdade a respeito dessas trevas e
às forças progressivamente adquiridas no estudo das leis divinas.
Estabelecida a diferença existente entre minha revelação como Messias
e minha revelação presente, continuemos a narração dos
acontecimentos, reproduzindo-os aos homens sob seu verdadeiro aspecto.
Pedro, em primeiro
lugar, o mais ciumento de meus discípulos, me renegaria. Não era portanto completamente crente, desde o momento que
negou sua aliança com Jesus.
João, o mais terno de meus
amigos,
desnaturava minhas palavras e me apresentava como dotado de poderes
sobrenaturais. Não estava por conseguinte dominado pela fé, visto que
teve que empregar a fraude para honrar melhor diante de todos minha
pessoa e engrandecê-la perante o espírito humano.
Tiago, irmão de
João, seguia o impulso que recebia de seu irmão, mais fanático que
ele.
André não era mais que uma pálida cópia de
Pedro.
Os dois Judas
estavam em constante oposição, tanto sob o ponto de
vista das idéias, quanto por sua mesma exterioridade.
Judas, primo de
Pedro, era tímido de espírito, de constituição débil, fácil de
comover-se, predisposto a ser influenciado por todos os afetos, a imitar
todas as virtudes, a humilhar-se diante de todas as superioridades;
porém sem iniciativa e sem forças para lutar abertamente contra a
adversidade.
Judas, o que se chama ordinariamente Judas
Iscariote, não
tinha as aparências de uma natureza perversa, e devemos corrigir a
opinião dos homens a respeito deste discípulo oprimido sob o peso de
uma reprovação universal. Possa nosso juízo fazer penetrar nos
espíritos essa terna piedade, que desculpa todos os extravios, esse
desprezo pelas prevenções, que proporciona a sabedoria. Possa nosso
juízo demonstrar a fraqueza dos juízos humanos, quando julgam de uma
vida inteira pelo efeito de um só ato, ainda que este ato tenha sido
delituoso. Judas era moreno e seus cabelos caíam naturalmente sobre
seus ombros. Tinha a fronte larga, os olhos grandes e bem abertos, a tez
pálida, as formas sem defeitos; sua voz, bem timbrada, tornava-se
eloqüente, quando se inspirava em assuntos graves. Na intimidade era
ele quem provocava a alegria nos semblantes, com suas anedotas e
observações cheias de agudeza. Jamais se lhe viu em proveito próprio
a mais insignificante parte do nosso reduzido pecúlio, o que, por outra
parte, ele nunca administrou; meu tio Tiago era o encarregado
especialmente disso.
O mau conceito que persegue Judas neste sentido é
o resultado de um dado inteiramente falso com respeito às suas
atribuições entre nós. Excessivamente ciumento e aspirando honras e
alegrias vaidosas, desejoso de estabelecer sua superioridade em uma
associação fraternal, cujos membros se consideravam iguais; eis os
defeitos daquele que mais tarde me atraiçoou, para satisfazer um
ressentimento de cuja causa sou o culpado.
Por que dava eu a Pedro
provas de uma confiança tão evidentemente exclusivista? Por que
permitia a João essas maneiras de preferido que acusavam uma manifesta
parcialidade de minha parte para com ele? Por que, quando eram poucos os
que deviam acompanhar-me, escolhia sempre os mesmos? Por que, enfim,
tendo descoberto o mau efeito que isto produzia em Judas, não soube remediá-lo?
Sim, digamos bem alto: Jesus, o irmão
protetor de Judas, não deteve suficientemente a atenção em sua
natureza sensível, ainda que desviada. Jesus não compreendeu que era
necessário combater o ciúme, a vaidade, o orgulho desse homem, por
meio de uma extremada doçura em todos os casos e com uma justiça
severamente igualitária nas manifestações de todos para com um só e
de um só para com todos. Coloque-se Judas no lugar do discípulo
predileto e este no lugar de Judas: João, não vendo-se já apoiado por
minha excessiva debilidade, ter-se-ia mantido nos limites de uma
afeição santa, e não houvera ofendido a verdade com o extravagante
desejo de querer-me estabelecer um culto divino; Judas, entretanto,
dirigido no sentido que lhe era mais conveniente, não teria
atraiçoado. - Pobre Judas! - Eu afastava-me dele à medida de seu
maior ressentimento; o mal ia-se agravando; o abismo abria-se quando eu
justamente podia encontrar o remédio em meu amor, evitando a queda
desse espírito fraco. - Pobre Judas! - Em minhas últimas horas tu,
mais que tudo, ocupaste meu pensamento, e minha alma se inclinava para a
tua para falar-te de esperança e de reabilitação. (2)
Perdido, se disse,
perdido está o que atraiçoou a Jesus. - Oh, não! - Nada se perde das
obras de Deus. Todas volverão a encontrar-se purificadas pelo
arrependimento, glorificadas pela resolução reparadora, luminosas
depois do perdão. - Oh, não! - Nada se perde das obras de Deus. Todas
chegarão a ser grandes, todas serão honradas; todas se arrastam
penosamente pelas encostas da montanha para iluminar-se afinal, chegadas
que sejam lá acima, com os esplendores do fogo divino.
O abandono cheio
de ingenuidade e o caráter feliz de Alfeu contrastava com a obscura
fisionomia de Filipe, o qual se obstinava em vaticinar um porvir
infausto e o fracasso de nossas doutrinas.
Tomé
nunca acreditou na revelação divina, porém havia-o
fanatizado a grandeza da obra.
Mateus, o mais bem preparado de meus
apóstolos, foi também o mais sincero ao referir nossos discursos.
Meu
irmão Tiago era sempre o primeiro em responder sim a tudo o que eu
propunha. Minha paciência e minha coragem seriam recompensadas por este
filho de Maria, e a graça coroaria o espírito de meu irmão nos
últimos dias de minha vida mortal.
A familiaridade que reinava entre
todos nós não impedia sentimentos de outra índole, como o do
reconhecimento da superioridade, embora na mais íntima amizade, e bem
me lembro, emocionado, a constante dedicação de Mateus para com Tomé
e a paternal proteção de meu tio Tiago para com Lebeu.
"Eu dizia a Pedro: "Caminhemos para a conquista da
Humanidade. - Por que repousarmos em calma e juntar alegrias dentro da
tranqüila posse do que já temos alcançado quando novas possibilidades
estão reservadas ao nosso ardor e a nossos sacrifícios? - Por que
pedir forças a Deus e não empregá-las depois para a conquista de seus
desígnios?
"Jerusalém! - Esperança de minha vida! - Cidade
venturosa! - O grito sublime de chamada sairá de teu seio e teus filhos
serão os verdadeiros adoradores do Deus vivente e eterno.
"Os
delitos e as ruínas darão origem à sabedoria e à magnificência, a
Terra dirigirá para ti seus olhares desolados e tu a encherás de
consolos e de luzes. Os homens te chamarão a glória das glórias,
porque a paz, a liberdade, o poder e o amor se confundirão e reinarão
unidos, só por tua virtude.
"Ainda que os justos pereçam nas
mãos dos verdugos, que teus escravos forjem suas próprias cadeias; que
teus tiranos adormeçam sobre suas vitórias; nada, nada será capaz de
retardar a hora da liberdade, e o amor fraterno se estabelecerá entre
todos os homens."
Pedro, enquanto eu lhe expunha meu pensamento sob formas simbólicas
e proféticas, participava do meu entusiasmo eme haveria seguido até o fim do
mundo; porém, muito depressa esse
entusiasmo se arrefecia e ele voltava a ser o apóstolo dos primeiros
dias, que ocultava debaixo do aspecto da devoção o medo que o
dominava. Minha predileção por Pedro tinha-se formado devido à
retidão de seu caráter, ingenuidade de espírito, delicadeza de
sentimentos e à sua excessiva probidade. Falando- lhe com palavras
singelas, das quais mais tarde se serviram como motivo de acusação por
um delito futuro, eu não fazia mais que ler com meu natural
discernimento o que se passava nesse coração leal, nesse espírito
débil e pouco desenvolvido.
Em nossas reuniões familiares (assim
designávamos as horas da refeição e minhas conversações à noite)
Pedro, sempre colocado na minha frente, parecia querer defender-me do
trabalho das respostas e evitar-me a banalidade das cousas materiais.
Tornava-se todo ouvidos quando eu falava e seus olhares se esforçavam
em ler meus pensamentos, quando eu me calava. Cuidava de minha pessoa
como faz uma terna mãe pelo filho, e quando mais tarde eu queria
permanecer em vigília, ainda que aparentemente cansado, empenhava-se em
demonstrar-me que devia cuidar mais de minha saúde, perseguindo-me com
uma solicitude que chegava a ser incômoda por exagerada. Durante nossas
caminhadas, em nossas excursões mais distantes e nos momentos de
descanso, sempre consultava-se Pedro a respeito de todos os detalhes, do
que ele se aproveitava para opor conselhos de prudência e de calma ao
meu ardor e ao meu calor pelas obras, empregando a maior lentidão nos
preparativos para assegurar, dizia ele, o êxito de nossa missão.
Um
dia nos encontrávamos todos reunidos, dirigi-me a Pedro e lhe disse:
"Tu serás o primeiro de meus sucessores, porém resultará,
para vergonha tua, que decairás de teu dever abandonando a teu mestre.
O abandono não consiste unicamente na separação material, senão que
se demonstra também e com muita crueldade, com a separação dos
espíritos.
"Felizes os que não viram e creram!
"Mais felizes
ainda são aqueles que vêem e compreendem sem o concurso dos sentidos
materiais!
"Felizes os que sofrerem por causa da verdade, porque deles é o
reino de meu Pai! "Felizes os livres e os fortes! - A liberdade e a
coragem adquirem-se com a renúncia dos bens da Terra pelos bens
eternos.
"A fé demonstra-se com os trabalhos e brilha diante das
perseguições.
"A graça deve ser espalhada para atrair com seu
aroma sobre quem ainda não desceu.
"Os dons de Deus devem
fortificar-se mediante as provas para fecundar o porvir.
"De que
valem a Deus vossos protestos e aos homens vossa doçura, se há de
permanecer estéril?
"Como quereis que Deus acolha vossas preces na
graça se esta graça só é aproveitada por vós?
"Com que fim
pretendeis que Deus vos encha de dons, que vós mantendes ocultos?
"Homens de pouca fé! A Terra vos prende porque careceis da
verdadeira convicção da vida futura. (3). Homens indignos da graça! A
graça deixa-vos frios e enfadados porque não a compreendeis! Homens
fracos e embrutecidos! Os dons de Deus são para vós o que seriam as
pedras preciosas para os animais imundos."
Pedro
arrojou-se a meus pés, pronunciando estas palavras:
"Senhor, amado Senhor, faze de mim o que melhor te convenha. Sou
teu servo e não tenho outra vontade senão a tua".
Nesse momento Pedro
era sincero como sempre, senão que ele obedecia
a um sentimento e eu não me iludia com promessas tão a miúdo
renovadas. Contudo, procurei constrangê- lo mais que de costume a
abracei-o dizendo-lhe:
"Jura-me que me seguirás ate à morte e que me escutarás ainda
depois dela, como inspirador de teus atos, para a continuação do que
estamos realizando".
Juro, respondeu Pedro, amar-te e seguir-te até à morte e que
seguirei tuas instruções depois de ti, como se estivesses aqui. Assim,
pois, Pedro não havia compreendido a segunda parte do juramento que eu
lhe exigia desde que falava de minhas instruções presentes, ao passo
que eu lhe prometia novas inspirações depois de minha morte.
Continuei
insistindo desde esse dia sobre a ressurreição de meu espírito, (4) com
tanta perseverança, que as formas por mim empregadas foram aproveitadas
mais tarde para impor a crença de minha ressurreição corporal. (5)
"Voltarei, me sentarei a esta mesa para dar-vos a paz e a
força, para preparar-vos para a Páscoa, para fazer-vos saborear as
delícias dos favores divinos e facilitar-vos a pregação com o
auxílio da luz que vos darei.
"Digo-vos: a vida corporal do homem
é curta, porém, seu espírito viverá eternamente.
"A casa torna
a encher-se e o dia sucede à noite, em todos os tempos e em todos os
lugares.
"A família reconstitui-se com os membros espalhados de
outra família antiga, (6) e a próxima estação dará bons frutos aos que
tenham sabido semear em momentos favoráveis.
"Aceitai as provas passageiras como uma necessidade para vossas
naturezas, e quando já não me vejais, honrai- me lembrando-vos, na
distribuição de bens, antes dos pobres que de vós mesmos.
"Já
seja que vos separeis ou que permaneçais reunidos para os fins da
consolidação de vossas doutrinas, eu estarei sempre onde vos
encontreis; mas não altereis nem dividais nada do que eu tenho formado
ou reunido, de outro modo meu espírito se afastará de vós.
"A
vergonha e o opróbrio serão o resultado de vossa ingratidão e o
desprezo a resposta à vossa iniqüidade, se vos deixardes influenciar
pelas paixões da Terra. Vós deveis ensinar o caminho para a vida
eterna, praticando a virtude e desdenhando as honras do mundo.
"Minha vida de homem tem que terminar de uma maneira miserável;
mas meu espírito seguirá a marcha dos séculos e dominará o ruído da
tempestade para amparar-vos na luta ou para reconstituir o que vós
tenhais destruído; para resplandecer em meio da plenitude dos vossos
triunfos, ou para arrojar luz entre as trevas que tenhais fomentado,
para defender-vos, ou para dar-vos o beijo fraternal, ou para
repelir-vos; para dizer-vos: eu estou convosco, ou para dizer-vos: eu
sou contra vós.
"Eu sou a vida, o que crer em mim viverá. Eu sou
o espírito de verdade e estou de posse da verdade de meu Pai.
"A
Terra passará, porém minhas palavras não passarão, porque a verdade
é de todos os tempos, de todos os mundos, ao passo que a Terra não é
mais que uma habitação momentânea.
"Não digas jamais: nós somos mestres. Sede, pelo contrário,
modestos e praticai os princípios de fraternidade, amando a todos os
homens e ajudando-os.
"Quaisquer
que sejam vossas penas e tribulações dizei: Deus meu, que se faça tua
vontade e não a minha.
"Em
meio dos sofrimentos vos darei a alegria e sempre que orais estarei no
meio de vós.
"Sede
pacientes na adversidade e nunca desejais a ruína e a desgraça de
vossos inimigos. A força nasce da adversidade e a resignação facilita
o adiantamento do espírito.
"A
malícia e a má-fé vos impelirão para as insídias e os homens vos
oprimirão com injúrias por minha culpa; mas eu estabelecerei minha
morada entre vós e juntos prepararemos o reino de Deus sobre a Terra,
posto que se disse de mim: Eis a aliança do passado com o porvir.
"Eu
vos repito, o espírito será visto novamente e a Terra estremecerá de
alegria.
"A
marcha do espírito se efetuará tanto em meio do silêncio e das trevas
da noite como em pleno dia e em meio do tumulto das paixões humanas. A
voz do espírito far-se-á ouvir por todas as partes e o pensamento de
Deus se revelará com manifestações visíveis e próprias de seu poder
e de sua vontade."
Eu falava sempre neste sentido e concluía a maior parte das vezes
com um pretexto moral ou com alguma consolação profética, cujo
significado temerário ou valor real posso explicar agora.
Irmãos meus,
pareciam-me definitivas as formas de minhas alianças e de meus laços
humanos e jamais pensei em separar-me dos que se me haviam associado em
minhas tentativas de reforma; porém nessa época foi tanto o que tive
de lutar, cansado dolorosamente, contra o desalento, que me arrependi de ter-me
ligado a espíritos demasiado novos para compreenderem- me, demasiado
dependentes da família para que pudessem sacrificar-se-me por completo.
Pedro era casado. Os dois filhos de Salomé sustentavam a mãe. Somente
Judas e Lebeu estavam livres de parentela que pudesse pesar sobre eles
por sua pobreza. Meus dois Tiagos, já se sabe, não tinham outras
esperanças senão aquelas que depositavam em mim, nem outros temores e
cuidados. Aprovei com facilidade todos os projetos de meus apóstolos,
cujo fim era o de amenizar em algo nossa vida em comum; porém, eu
recomendava-lhes uma probidade escrupulosa em suas relações com os
estranhos e o abandono de seus direitos diante da falsidade e da
prepotência dos outros.
"Nosso pai que alimenta as
avezinhas - dizia-lhes - vos mandará
vosso pão quotidiano se colocardes nele toda vossa confiança.
"Pedi o perdão, perdoando vós também aos que vos tenham
ofendido. Louvai a Deus quer quando vos encontreis de boa saúde, quer
encontrando-vos enfermos, tanto em meio da alegria como da tristeza, e
mesmo na pobreza que na opulência.
'Livrai vosso
espírito das
tentações da carne e segui a lei de amor e de justiça. "Deus
está em todas as partes, ele vê vossos pensamentos mais secretos. Privai-vos portanto de dirigir-lhe vossas preces somente com os lábios.
Meditai sobre estas minhas palavras. Encontrareis assim a regra de uma
conduta edificante e a fonte das orações agradáveis ao Senhor nosso
Deus."
Irmãos meus, a oração dominical não foi ditada por
mim. Nossas
preces eram feitas com o pensamento e com a prática dos deveres que
nós nos impúnhamos. Orávamos em todos os momentos do dia, quando
oferecia a Deus o sacrifício de minha vida, para semear com meu sangue
a Terra prometida à humanidade do porvir. Orava a toda a hora para
aliviar minha alma, que buscava Deus, e para purificar meu espírito das
emanações terrestres. Porém, não tinha que formular orações que meus ensinamentos preparavam, e restringia-me simplesmente a assuntos
de moral e às explicações referentes à nova lei que queria que
substituísse a antiga. A nova lei tinha seus fundamentos em máximas
que eu tinha recolhido e sobre o trabalho de meu próprio espírito
quando percorria as esferas da espiritualidade, diante das verdades
divinas. A nova lei inculcava o amor universal e abolia todos os
sacrifícios de sangue. A nova lei favorecia o livre desenvolvimento de
todas as faculdades individuais para que concorressem para o bem geral,
e honrava a todos os homens, dizendo-lhes:
"Sede iguais diante de Deus. O poder dos homens não dura mais
do que um momento, ao passo que a justiça divina é eterna.
"Os
primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros para dar
esplendor a esta justiça.
"A pobreza dá direito às riquezas.
Felizes os que são pobres voluntariamente para a glória de Deus.
"A escravidão será banida da terra, porque a mulher é igual ao
homem e o servo vale tanto como o senhor, diante da sabedoria divina.
"Esta sabedoria é a que rege os destinos, recompensa e castiga,
envia a palavra de paz no meio de todas as humilhações, no meio de
todos os sofrimentos, de todas as torturas da alma, do espírito e do
corpo".
Eu unia-me tão intimamente com a pobreza que dizia:
"Os pobres são meus membros".
E buscava com tanta avidez a vergonha, para dar-lhe a esperança da
purificação, que mulheres de má vida, vagabundos de toda laia,
converteram-se no cortejo permanente de minha pregação durante este
período de minha vida, desde o dia de minha vitória sobre as
indecisões de meus apóstolos até o de minha acusação perante o
Sinedrim de Jerusalém, ordenada pelos príncipes da lei e pelos
sacerdotes de Deus.
Eu estava convencido de que a morte me esperava em
Jerusalém e queria rodeá-la de tal maneira que meus apóstolos
guardassem dela a recordação vibrante de minha atitude, de minhas
palavras, de minhas demonstrações de amor, dos atos de humildade e de
todas as ferocidades.
Era necessário demonstrar a grandeza da minha
doutrina e explicar minha força de espírito (7) no meio dos acusadores e
dos verdugos, para morrer com as honras do êxito.
Eis por que eu
misturava no projeto desta viagem tantos estremecimentos generosos do
coração, com tantas amarguras do pensamento; tantas emoções felizes
com tantas energias em estigmatizar a covardia e o abandono; tão
agradáveis e persuasivas lições com tão duras e ameaçadoras
profecias; tanta ternura no sorriso e tanta tristeza no olhar.
Esgotado
pelas fadigas do apostolado, com o espírito devorado pela ambição das
alegrias celestes, via no martírio a promessa de um glorioso repouso, e
não procurava retardar a hora de sua chegada, porque sabia que a hora
estava marcada e que a elevada felicidade da espiritualidade pura que me
esperava começaria com os derradeiros espasmos de meu corpo material.
Podia, é certo, subtrair-me aos horrores do suplício, porém, isto me
haveria obrigado a vegetar na impotência e o porvir seria sacrificado
por tão pueril fraqueza.
Irmãos meus, esse fanatismo constituía o
sentimento de minha missão. Do vosso mundo, eu sou o único Messias a
quem lhe foi concedido poder continuar ostensivamente sua obra, porque
fundei-a com minha vida de trabalho e com minha vontade para o
sacrifício. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Estabeleçamos aqui, irmãos meus, uma comparação entre Sócrates e
Jesus, ambos mortos pela glória de uma doutrina, de razão sã e
honrada pela luz divina.
Sócrates fez-se afetuoso e filósofo dominando suas paixões; fez-se
religioso compreendendo a Natureza; fez-se forte falando com os
espíritos de Deus.
Sócrates morreu perdoando a seus verdugos e
abençoando a morte que lhe restituía a liberdade; mas não pôde
fundar um culto para com o verdadeiro Deus, nem demonstrar a utilidade
de sua morte para os homens do futuro, e não resta dele mais que uma
escola, famosa, é certo, porém, sem preponderância no Universo,
porque a palavra emanava aí de homens cheios ainda de superstições,
apesar dos princípios de moral postos por eles em prática. A doutrina
da existência de um só Deus ensinada por Sócrates e mais tarde por
seus discípulos não se elevou acima das ruínas da idolatria e não
lançou os fundamentos de uma sociedade nova.
Ao fazer ressaltar assim
minha superioridade como Messias, devo não obstante inclinar-me diante
deste Sábio e apontá-lo à Humanidade como um dos seus membros mais
dignos de respeito e de amor.
Sócrates viveu na pobreza e jamais seus
lábios foram manchados pela mentira. Foi puro de todo o ódio e de todo
o desejo humilhante para a consciência; jamais sua palavra se elevou
para acusar e jamais seu coração guardou ressentimentos. A piedade
para o infortúnio, o desinteresse em suas relações, a força e a
justiça contra a insolência e a falsidade, honraram a vida de
Sócrates, e a morte transportou-o no meio de torrentes de luz para as
fontes de todas as honras. Sócrates tem um ponto de semelhança com
Jesus, e é de haver dado o exemplo das virtudes que pregava e de ter
morrido pela verdade. Mas Jesus, mais adiantado que Sócrates no
conhecimento do espiritual, tinha que dar maior impulso a seus
sucessores e projetar mais luz em seu derredor, e na luta com os
instintos da natureza carnal em presença das invasões das esperanças
divinas, Jesus teve que demonstrar-se mais forte, porque se encontrava
menos sujeito à matéria, por direito de ancianidade de espírito. A
marcha de Jesus, desde sua infância até o Calvário, foi em todos os
momentos a consagração de sua idéia. Sócrates, pelo contrário, não
pôde ver-se inteiramente livre das superstições e permaneceu escravo
das idéias de sua época na presença das maiorias populares, apesar de
que adorava a Deus com seus discípulos. Porém, aí também se descobre
um ponto de semelhança. Sócrates, do mesmo modo que Jesus, não podia
desafiar a opinião pública sem incorrer na severidade das leis, e se
Jesus se demonstra em suas doutrinas menos distanciado da religião
judaica do que Sócrates nas suas, da pagã, isso em nada diminui o
justo valor, desde que ambos se viam obrigados a não contrariar
demasiado a religião dominante. Se Jesus correu para a morte, ao passo
que Sócrates a viu simplesmente aproximar-se sem estremecimento, é
porque Jesus estava convencido de sua missão Divina. Nisso consiste sua
superioridade indiscutível sobre Sócrates, sendo esta precisamente a
auréola de sua glória e a causa de sua nova mediação.
Jesus bem
sabia que podia evitar a morte, porém a filiação divina que ele se
havia dado, a radiante esperança que demonstrava para inspirar a futura
docilidade a seus apóstolos, a palavra profética que lançava como uma
chama sobre o porvir, tudo constituía uma lei que o impelia a morrer
dolorosamente e por sua própria vontade . . . . . . . . . . . . . . . .
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Resolvemos ir antes que tudo a Nazareth; eu tinha pressa de ver minha
família. Minha próxima visita à minha mãe formava o argumento de
minhas meditações durante o caminho e meus discípulos respeitavam meu
silêncio.
Previa as repreensões que minha mãe me dirigiria ao
conhecer minha resolução de lutar com os sacerdotes de Jerusalém. Eu
havia abandonado os meus para entregar-me a todos, tinha descuidado os
deveres de família para desligar-me dos impedimentos carnais. Mas,
tinha eu realmente o direito de proceder assim? Seria bem vista aos
olhos de Deus a transgressão da lei humana, no que ela tem de mais
justo e solene, qual é o amor e a docilidade dos filhos para com a
mãe? Por que, Deus meu, essa angústia da alma se eu obedecia à tua
voz? Por que estas aflitivas recordações retrospectivas, se minha
missão de Messias devia sobrepor-se à minha natureza humana, a meus
deveres de filho e às minhas aflições terrestres? Por que tanta
atividade para preparar o sacrifício, se ele constituía um ultraje à
moral universal, baseado na dependência dos seres e em suas relações
fraternais? Por que, Deus meu, este desânimo no momento das honras e por que
este falso caminho levado a termo por teu poder e por tua justiça?
Eu
orava. A oração acalmava estas agitações de minha natureza humana,
engrandecendo os desejos espirituais e alimentando meu coração com o
fogo do amor divino. Orava e a esperança das alegrias celestes
escondia-me as sombras de minha vida de homem, e a divina missão
apresentava-se-me como uma chama devastadora das ternuras da alma e das
alianças do espírito em meio da matéria. Depois de haver orado, só
me ocupava de Deus.
Depois destes delírios e destes recolhimentos eu
sentia-me mais forte e meu pensamento era transmitido com mais nitidez
ao meu cérebro.
Aproximava-me a meus companheiros e fazia-os participar
de minha liberdade de espírito. Reunia-os tão estreitamente em minha
felicidade futura, que inclinavam a cabeça diante de meus olhares
inspirados e beijavam minhas vestes com tal fé e entusiasmo que minha
alma se alvoroçava.
Chegamos a Nazareth. Deixei meus apóstolos em uma
casa próxima à cidade e com meu tio e meu irmão apresentei-me na casa
paterna.
Toda a família estava reunida para receber-nos e pressentimos
uma oposição mais viva nesta concentração de forças. Meus irmãos
consangüíneos, cujo número de cinco se havia reduzido a três
(deplorava eu o mau humor de meus outros irmãos, assim como eu, filhos
de Maria), tinham pensado poupar-me um acolhimento demasiado frio. O
irmão que me seguia em idade vivia em um lugar distante cinco estádios
de Nazareth. Eu não podia conhecer as qualidades de seu coração, nem
as relações que se mantinham entre ele e os demais irmãos; porém em
seguida, li em seus olhares o profundo desprezo que lhe inspiravam minha
vida errante e meus trabalhos de apóstolo. Ia para abraçá-lo, porém
ele repeliu-me e pronunciou estas palavras:
"Eis-te!aqui!
Vens agora para permanecer muito tempo ou por uma hora? Voltas a ser
nosso irmão ou segue sendo o filho de Deus? Devemos absolver-te ou
resignarmo-nos a uma separação definitiva? "Teus irmãos são
filhos de José e de Maria, que tens tu demais que eles? Teus irmãos têm cumprido seus deveres de filhos e
de parentes, que tens feito tu de tua parte?"
Inclinei a cabeça ante esta recriminação que envergonhava minhas
divinas esperanças e em seguida, dirigindo-me à minha mãe, disse-lhe:
"Pobre mãe, teu filho Jesus te inunda em lágrimas, porém ele
chama Deus em testemunho da pureza de seu coração e da lealdade de
suas intenções; seu espírito está abrasado pelo desejo espiritual e
te amará a ti muito mais na pátria celestial do que pode amar-se sobre
esta Terra".
"Sim, interrompeu meu irmão, na pátria celestial não se
precisa de nada, o amor de Deus alimenta, e nossa mãe será amada pelo
filho de Deus. Que honra para todos nós, se isso fosse algo mais que um
sonho de um insensato!"
A estas palavras meu tio e meu irmão Tiago se aproximaram a mim
dizendo: Nós também somos insensatos!
Aproximei-me à minha mãe e,
passando-lhe o braço debaixo do seu, conduzi-a em direção do pequeno
jardim que se estendia por baixo da janela do compartimento em que nos
achávamos; nossos irmãos nos acompanharam.
Meu cansaço, a pobreza
demonstrada por minha indumentária excitaram a compaixão das três
mulheres e começaram a prodigalizar-me, ali mesmo, uma série de
atenções delicadas e de cuidados, que me fizeram sofrer muito mais que
a frieza de meus irmãos.
Eis os nomes de meus irmãos e irmãs por
ordem de idade: Efraim, José, Elisabete, Andréa, Ana e Tiago.
Quanto a
meus irmãos consangüíneos, os que a história nebulosa de minha vida
converteu em primos, recordo-me com um sentimento de felicidade de seus
afetos. Chamavam-se: Matias, Cleofas, Eleazar.
José e Andréa
seguiram-me mais tarde para opor aos meus meios de propaganda a
negação de meu título divino e acusarem-me de loucura. Meus irmãos
Matias, Cleofas e Eleazar demonstraram-se-me mais tarde, porém só com o desejo de arrancar-me
à morte, sem combater minha fé.
Permanecemos vários dias em Nazareth.
Minhas irmãs, a mais jovem das quais vivia com minha mãe, disputavam o
prazer, diziam elas, de servir-me, e meus irmãos andavam atentos à
minha voz. Minha mãe inspirava-se em meus pensamentos e elevava-se em
aras de pureza da prece, quando lhe demonstrava a necessidade do meu
sacrifício.
"Oh, Deus meu, dizia ela, submeto-me à tua vontade, mas ampara
minha resignação e proporciona-me provas evidentes de que meu filho se
encontra na luz!
"Dá à minha fé o apoio que lhe falta, à minha esperança uma
luz que possa torná-la segura e então meu amor de mãe sucumbirá sob
o poder de teu amor divino."
Um dia em que nos encontrávamos sós minha mãe e eu, mostrei-lhe a
areia que cobria a terra e nossos pés e depois, com urna varinha,
tracei alguns caracteres, cujo sentido era o seguinte:
"Jesus tem que morrer para glorificar a Deus, ou viver para ser
desonrado diante de Deus".
Expliquei à minha mãe a fonte de minha ciência e a prova material
de minhas inspirações divinas. Deixei-a sob a impressão da surpresa e
arrastei-a em seguida para a convicção de meu espírito e entusiasmo
de minha alma. Impressionei sua imaginação enquanto dava satisfação
à sua inteligência. Preparei-a para o sacrifício com a exaltação de
minhas crenças e da luz das ordens de Deus.
Minha mãe ficou
convencida, ainda que não de todo resignada.
Durante nossa estada em
Nazareth, tínhamos todas as noites conversações com muitas pessoas e
respondíamos com doçura às objeções e ao curioso desejo de
encontrar-nos em faltas. A familiaridade de meus discípulos com meus
irmãos, deu o resultado de sermos espiados e molestados em todos o
lugares, por onde tivemos de passar depois. Minha independência não
foi pois completa, como se crê geralmente, posto que, impelido aos extremos
da contrariedade, que me suscitava minha família, cheguei a criar-me um
direito de minha própria liberdade de espírito e a proclamar que não
conhecia irmãos, nem parentes, nem aliados.
Deixo Nazareth pela última
vez.
Levo comigo a dolorosíssima recordação do sofrimento de minha
mãe e das lamentações carinhosas de minhas irmãs.
Meus queridos
irmãos acompanharam-nos até certa distância e nos separamos com
lágrimas nos olhos.
Torno a levar comigo meu tio e meu irmão Tiago,
que querem acompanhar-me ate à morte.
Íamos silenciosos ao afastar-nos
de Nazareth. Estas expansões no seio da família tinham feito recordar
a meus discípulos a família ausente, e a alma de Jesus curvava-se com
dor sob o peso do amor filial e fraterno.
Tínhamos que colocar-nos nas
condições de homens que tudo sacrificavam pelo triunfo de uma idéia,
sendo que meus discípulos conservavam a esperança de tornar a ver aos
que tinham deixado, enquanto que eu apoiava sobre minhas recordações e
sobre minhas aspirações a mão gelada da morte, fugindo-me ao mesmo
tempo toda imagem consoladora para encontrar-me olhando no vácuo... O
vácuo se animava por minha obstinação em dar-lhe vida e, deste modo,
do sofrimento extremo eu me transportava aos resplendores divinos.
Oh,
Deus meu! - Quanta felicidade nessas visões! - Mas também quanto
abatimento na realidade! - Quantas honras depois da vitória, porém,
quantas amarguras durante o combate!
Irmãos meus, não poderia
repetir-vos suficientemente, a luz de Jesus era momentânea, fugaz, e a
natureza humana arrojava seu espírito no meio de cruéis perplexidades,
para honrar nele, como em todas as criaturas, o eterno princípio da
justiça divina.
Meu projeto ao abandonar Cafarnaum era o de visitar a
todos os meus amigos de Jerusalém e de procurar novos aliados para dar
às minhas doutrinas maior exterioridade. Queria demonstrar meu título
de filho de Deus com as explicações de meu título de Messias, junto
aos que se encontrassem em condições de compreender esta aliança,
baseada sobre a razão e a justiça divina, porém, estava bem disposto
a não fazer uso a não ser da primeira destas prerrogativas, a de filho de Deus, em todos os casos de
agitações tumultuosas das massas ignorantes e de exaltações
fanáticas de meus mais sinceros servidores. Era necessário assegurar o
porvir e um reformador; um Messias teria caído depressa no
esquecimento, sobretudo depois das manifestações cheias de
maledicência do povo, que meus inimigos não deixariam de sublevar
contra mim.
Nesta última parada em Jerusalém eu tinha que afirmar a
crença em meu poder espiritual, sem proporcionar base para acusações
de parte da posteridade no sentido deste poder espiritual, quer dizer
que minha presença entre os homens devia fundar uma religião
universal, (8) deixando em todos os espíritos o germe indestrutível do
amor fraternal, de que era o iniciador e o mártir.
O filho de Deus que
libertava seus irmãos da escravidão e que morria para dotá-los de uma
lei de amor; o filho de Deus que revelava seus mandamentos no meio dos
pobres, dos enfermos, dos pecadores; o filho de Deus que salvava a
mulher adúltera da primeira pedra com estas palavras: Atire-lhe a
primeira pedra o que se sinta livre de pecados! - O filho de Deus que
levanta a pecadora com estas palavras:
"Vem, a casa de meu Pai está preparada para receber-te, já que
detestas teu passado".
O filho de Deus que dirá a todos:
"Amai-vos uns aos outros e todos os vossos males cessarão, e
todos as vossas ofensas a Deus vos serão perdoadas".
Este filho de Deus não tinha necessidade de ferir a imaginação com
fantasmagorias, porém, tinha que afirmar seu prestígio divino e
conquistar a Humanidade, apoiando sua moral com o exemplo.
Que este prestígio tenha alcançado seu coroamento aqui e tenha
obscurecido sua memória em outra parte. Nada importa! - Este prestígio
fica com a sanção da obra e é o que Jesus queria.
Que a Humanidade
não tenha sido ainda conquistada por culpa dos sucessores de Jesus. -
Não importa! - Porque Jesus está aí, e quer reconstruir sua igreja. (9)
Jesus disse e eu o repito (10):
"Trago a palavra de vida. Todo o que ouça esta palavra terá
que espalhá-la. "Apresentai-me a verdade e eu vô-la direi agora e
mais tarde, posto que a verdade é de todos os tempos, e eu sou a
alegria e a esperança, o presente e o futuro".
Eu me detive imediatamente nas margens do Jordão. Entregamo-nos às
práticas da purificação, encontrando-nos na época dos maiores
calores do ano. Além disso, sempre com o propósito de conduzir os
homens para a crença na ressurreição (11) do espírito, pronunciei
muitos discursos no sentido de minha participação futura na
libertação da Humanidade e do estabelecimento de minha doutrina na
Terra.
"Ninguém, dizia eu, crê agora na ressurreição do espírito,
porém, acreditar-se-á certamente quando eu voltar para acusar e
amaldiçoar aos falsos profetas, as perniciosas doutrinas, os ferozes
dominadores, os depravados e os hipócritas.
"Acreditar-se-á
certamente quando Deus acalmar a tempestade com a minha palavra e que
esta palavra seja repetida, de boca em boca, até à consumação dos
séculos! - Quando os mortos despertem de seu sono para anunciar a vida!
- Quando a Natureza exausta receber um novo impulso e que o sangue não
brote mais de suas entranhas!
"A ressurreição efetua-se também
agora, porém, se evidenciará melhor quando possais conservar a
lembrança de vosso passado, e afirmo-vos: muitos dos que me escutam me
verão e me reconhecerão." (12)
A purificação, novo batismo, como dizia João, não tinha também a
predileção de meus pensamentos. A culpa e o delito, todos os vícios,
principalmente a hipocrisia, sugeriam-me preces fraternas para obter um
arrependimento verdadeiro; porém, como João pronunciava com palavras
severas a condenação do pecador submerso na impenitência final.
De
minha diferente forma de falar, segundo os homens a que me dirigia,
creio, irmãos meus, ter-vos já dado a razão, e as contradições
postas em evidência mais tarde, como acusações perante o povo de
Jerusalém, explicam-se facilmente. Mas as contradições cessam desde o
momento que anuncio o reino de Deus, que muitos verão e que confirmo a
ressurreição do espírito, desataviando-a das formas nebulosas que lhe
dera a princípio, para fugir de uma perseguição muito extremada.
Eu
coloco-me neste instante como demonstrador da justiça divina e acuso
com maior energia as instituições humanas, posto que aponto as
riquezas como um escolho, o poder como uma aberração e o princípio
sobre que descansam as leis humanas como um flagrante delito de lesa-majestade divina. Deito abaixo todas
as posses baseadas no direito do mais forte e proclamo a escravidão a
mais vergonhosa demonstração do embrutecimento humano, anuncio o reino
de Deus que muitos verão e confirmo a ressurreição do espírito
dizendo:
"A liberdade do homem obtém-se gradualmente, com a força de
sua vontade unida às luzes de seus predecessores na vida espiritual.
"Estas cousas não podem, entretanto, ser compreendidas agora, mas
virá tempo em que todos compreenderão e então o reino de Deus se
estabelecerá sobre a Terra.
"Muitos dentre vós verão o reino de
Deus e o Messias repetirá as palavras que hoje pronuncia.
"O homem
novo renascerá até que o princípio carnal tenha sido extinto nele.
Todo aquele que nasce tem que renascer e os que tenham vivido bastante
irão viver em outro lugar.
"O espírito do homem tem que abandonar
seu corpo; porém o espírito voltará a tomar outro
corpo. Por isso,
quando vós me perguntais se eu sou Elias, respondo-vos: Elias voltará,
mas eu não sou Elias, sou o filho de Deus, e meu Pai me mandará
novamente (13) para fazer resplandecer sua justiça e seu amor, porém
somente me mostrarei a alguns e meus discípulos terão que repetir
minhas palavras e afirmar minha presença.
"Sou o Messias e o
Messias morrerá sem haver terminado sua obra; porém concluí-la-á
depois de sua morte.
"Recomendo-vos que vos liberteis do temor da
morte, porque a morte se reduz a uma mudança de residência, e fazei da
ressurreição do espírito uma honra para os que não tenham
prevaricado contra minha lei.
"O espírito caminha sempre para
diante enquanto estiver amparado pela fé nas promessas de Deus, que
concede também a graça de poder persuadir aos homens, aos que têm
fé. "Não vos amedronteis com minha morte e caminhai para o
Espírito com fé e com amor.
"Não espereis dos homens a
recompensa dos vossos trabalhos; ponde somente em Deus vossas
esperanças. "Deus jamais permanece surdo à prece e aos desejos de
um coração puro e agradecido".
Irmãos meus, no exercício do apostolado Jesus teve que ser
desprezado dos ricos e dos poderosos (excetuando alguns casos dos quais
já vos falei e que farei novamente ressaltar), porém, no último
período de minha missão, o povo, cujos direitos Jesus tinha sustentado
sempre acalmando seus sofrimentos morais, o povo foi seu acusador e seu
verdugo.
É que a ignorância converte o povo em cúmplice de seus mais
cruéis inimigos. É que a hipocrisia, baldão espantoso da humanidade
terrestre, emprega como instrumentos para oprimir o pensamento, algemar
o braço, ferir o coração, aqueles mesmos a quem devera aproveitar o
trabalho do pensamento, a força do braço, o amor do coração.
Eu
tinha que cair tão-somente pela malevolência das multidões, sabia
igualmente que esta malevolência se manifestaria e para isso preparava
meus discípulos.
"Sede meus guardiães e meu consolo, dizia-lhes, rodeai- me de
ternura, pois que me vejo entre as garras da má-fé dos grandes, e da
ingratidão dos pequenos, do ódio dos maus e do abandono dos
melhores."
A clara interpretação de minhas forças e de minhas esperanças
produzia-se cada vez mais no espírito de meus fiéis e a respeitosa
deferência para com meus desejos favoreceu minha liberdade de ação e
meus meios de proselitismo durante o espaço de tempo que decorreu entre
minha chegada a Jericó e minha prisão no monte das Oliveiras.
Conte-se
sete meses entre estas duas épocas.
Gostava de Jericó, seja por sua
situação e pela afabilidade de seus habitantes, seja pelas lembranças
que despertava em meu espírito. Porém aqui também tenho que fazer
notar alguns erros.
A Zaqueu, o aduaneiro, e a Bartimeu, o mendigo,
deu-se-lhes uma denominação convencional.
O título de filho de David, com
que me denominaram em Jericó e em outras partes, não produziu em mim
mais que piedade e impaciência. O título de filho do Homem pretende-se
que tenha sido escolhido por mim; porém, eu jamais quis outro
patrocínio que não fosse o das denominações de Messias e de filho de
Deus. A condição de Messias está cheia de claridade; a de filho de
Deus compreende em sua obscuridade o direito de todo homem à filiação
divina, tal como já expliquei. A força do porvir, o triunfo da verdade
tinham que surgir destas palavras: Messias filho de Deus.
Que podia
importar a Jesus o título vaidoso de filho de David e o outro título,
ao qual se quer dar uma forma dogmática?
Direi mais tarde como e por
quem me foi dada a denominação de filho do Homem. Irmãos meus,
aproveito-me de minha permanência em Jericó para terminar o capítulo
décimo.
Começaremos o undécimo entrando em Jerusalém; a seguir vos
apresentarei meus hospedeiros de Betânia, Maria de Magdala, e muitas
personagens que vos são desconhecidas.
__________________
(1)
- Compreende-se como devia ser delicada a posição de Jesus, abandonado
às suas próprias forças no meio de um povo inculto, inteiramente
materializado, e nada disposto para as inovações. A Bíblia era para
ele o código infalível de toda a sua atrasado. - Nota do Sr. Rebaudi.
(1) - Com estas
palavras a doutrina da graça fica completamente desautorizada. - Nota
do Sr. Rebaudi.
(2) - Para os
espíritos verdadeiramente grandes é fácil o perdão das ofensas,
porém isso de querer tomar a seu cargo a culpabilidade recebida para
minorar a culpabilidade do ofensor e, o que é mais ainda, pensar, no
meio do mais horrível dos martírios, pensar, preocupar-se
profundamente pela sorte daquele que foi a causa desse mesmo martírio,
isto é somente próprio de um Jesus. Basta esta passagem, ainda que
não tivesse lido uma só linha mais da obra, para que eu diga a mim
mesmo: Ninguém senão Jesus pode ter escrito isto. - Nota do Sr.
Rebaudi.
(3) - Esta carência
de convicção é conseqüência da escassa evolução do espírito
humano, que não chegou a sê-lo o suficiente para viver definitivamente
no plano dos espíritos. Assim o provam os "quadros de além
túmulo", que unicamente se referem a assuntos do plano físico. - Nota
do Sr. Rebaudi.
(4) - Refere-se
naturalmente à sua volta como espírito. Era de certo modo uma
ressurreição desde o momento que voltava a manifestar-se depois de se
haver ausentado pela morte.
(5) - De acordo com o
critério dominante então, e que ainda domina entre nós, era
incompreensível o regresso de Jesus entre seus discípulos a não ser
com o mesmo corpo que conheciam. Ainda agora os católicos não concebem
a vida do espírito sem a materialidade das sensações, só
perceptíveis com os sentidos corporais. Por isso, para a plenitude dos
gozos dos eleitos e dos tormentos dos réprobos, a igreja católica
devolve seus corpos, no juízo final, a uns e a outros, Este modo
estreito de ver as coisas é devido precisamente à ridícula mania de
querer tomar como norma de existência a humana e como norma de
percepções a que resulta de nossos sentidos, de acordo com o qual toda
sabedoria e todas as potencialidades divinas se teriam esgotado na
formação do homem. Bem pobre, por certo, a idéia da divindade que
assim pudesse determinar! Os modernos espiritualistas, pelo contrário,
sabem que são infinitas e infinitamente diversas as percepções de que
é incapaz o homem de apreciar e nem sequer de suspeitar. - Nota do
Sr. Rebaudi.
(6) - Jesus insiste
freqüentemente nisto de família, deixando patente o critério superior
com que ele a entende, não muito conveniente por certo, para estreitar
seus vínculos. Sem dúvida alguma os laços de família são
passageiros, pois que se rompem com a morte, ao passo que os laços do
amor, pelo contrário, se consolidam, se engrandecem e se aperfeiçoam,
são as únicas ligações que perduram; a prova disso é que o amor
constitui a lei suprema do Universo. No caso presente, Jesus quer dizer
que os claros deixados pela morte nas famílias se preenchem facilmente
mediante o parentesco com famílias anteriores, sobretudo com os
matrimônios, que a miúdo determinam a fusão de duas famílias em uma,
com os filhos que nascem e até com as adoções; porém com a virtude
perdida não sucede o mesmo, e o quebrantamento de suas doutrinas, por
fraqueza ou falta de fé de seus apóstolos, seria um mal muito mais
difícil de remediar. Se fora possível no mundo atual o império das
idéias de Jesus, não haveria necessidade de rodear de tantas garantias
a constituição do lar, mas, não sendo assim, é preciso convir que a
família legal é a base primordial das sociedades civilizadas. - Nota
do Sr. Rebaudi.
(7) - Aqui emprega-se
a frase força de espírito como força de ânimo e nada há que
observar, porém a miúdo se descobre certa confusão no emprego das
palavras alma e espírito. Esta confusão é muito entre nossos
escritores moderno-espiritualistas. Eu, por minha parte, seguindo a
outros autores, entendo por espírito a alma revestida por seu corpo
astral, tal como se lhe descobre nas experiências medianímicas. É a
entidade completa, a alma provida de seus meios de individualidade e de
realização. - Nota do Sr. Rebaudi.
(8) - Volta Jesus a apresentar-se como o fundador da Religião
Universal, razão pela qual, com esta sua história, chamou sobre si a
atenção e as mais intensas simpatias dos moderno- espiritualistas. -
Nota do Sr. Rebaudi.
(9) - Aimé Martin
disse muito bem, que Jesus não veio acrescentar uma religião mais às
que já dividiam a Humanidade, senão procurar a unidade moral de todas
elas, ou, o que afinal é o mesmo, a unidade moral entre todos os
homens. O acerto deste conceito ressalta melhor ainda agora ao
apresentar-se-nos Jesus como o fundador da Igreja Universal de uma
maneira mais explícita, como não aparece nos Evangelhos, se bem seja
indubitável que as tendências da predicação de Jesus foram sempre as
de universalismo, sem estreitezas sectárias, como as que resultam de
todos os cultos e de todas as escolas, que se dão o nome de cristãs. O
catolicismo, por exemplo, consagra um sem número de ritos e de
práticas que nada têm que ver com o "ama a Deus sobre todas as
coisas e a teu próximo como a ti mesmo", sucedendo geralmente que
esse complicado formulismo toma as vezes do único fundamental na
doutrina do Mártir do Gólgota, isto é: o amor do próximo, o
esquecimento das ofensas e o retribuir bem por mal. Fora das religiões
oficialmente constituídas existem numerosos adeptos da idéia cristã,
que não obstante isso, nada parecem haver feito no sentido de se lhe
adaptarem, posto que os vemos sempre dispostos a combater com o primeiro
contendor em lugar de procurar o triunfo de suas idéias pelo amor e
pela justiça. - Nota do Sr. Rebaudi.
(10) - Como se terá
observado numerosas vezes, Jesus apresenta-nos duas personalidades da
sua única. O Jesus da encarnação não é o Jesus do espaço, o Jesus
espírito. E em realidade o Jesus da predicação possuía
peculiaridades que faziam dele um ser distinto do espírito que no
espaço se encontra na posse de todas as suas faculdades e livre dos
estorvos com que o meio humano o limiava em todo sentido. - Nota do Sr.
Rebaudi.
(11) - Ressurreição
do espírito por sua reabilitação mediante o arrependimento e os
desejos sinceros de não tornar a incorrer nas mesmas faltas. - Nota
do Sr. Rebaudi.
(12) - Nesta passagem
compreende-se que a palavra ressurreição foi empregada no sentido de
reencarnação. - Nota do Sr. Rebaudi.
(13) - Em espírito.
FIM
DO CAPÍTULO 10