Irmãos meus, revelando as causas de minha condenação e os juízos
errôneos de meus atos, desejo que minhas palavras não sejam
defendidas, a não ser por mim somente; é preciso, pois, deixá-las tal
como as exponho. Honremo-nos com o nosso respeito para as ordens de
Deus, não procuremos nem facilitar a admiração dos homens nem
diminuir a maliciosa pretensão de alguns dentre eles. Que unicamente o
escritor seja o responsável. À depositária de minha narração, não
lhe permito nenhuma adição ou correção. A todos os que formulem suas
dúvidas e à vontade séria de se iluminarem responderei eu mesmo. Sede
os discípulos dóceis do enviado de Deus. Suavizai sua repentina
aparição em meio de um mundo frívolo e cético atribuindo sua
aliança com os espíritos cuja luz vós outros haveis já demonstrado;
mas não altereis nada em seu modo de apresentar os acontecimentos. A
vida de Jesus deve ser precedida de comentários humanos, para explicar o pensamento que presidiu a esta
obra divina, e deve ser separada de toda a comunicação que não seja
do mesmo espírito. Passemos ao exame dos motivos de minha condenação.
"Eu tinha facilitado as sedições populares, fazendo cair sobre
os sacerdotes suspeitas de inteligência com os pagãos."
Sim, eu me havia associado a uma multidão de
revolucionários, cujo
objetivo comum, idêntico ao meu, não excluía intenções culpáveis e
perigosos excessos. Porém, já o invasor se cansava nas repressões das
sublevações, como na sanção dos juízos do tribunal
sagrado. O
direito político se estabelece sobre o direito humano; os cargos, os
empregos, fizeram-se acessíveis a todas as capacidades, e as facções
se enfraqueceram pouco a pouco sob um governo mais cuidadoso do bem
geral. Tão-somente o elemento religioso começou a semear a desordem
nos espíritos. O caráter eminentemente dominante do Grande Sacerdote
criava numerosos inimigos ao poder sacerdotal; mas estes inimigos,
divididos pela espionagem, empregavam suas forças em revoltas parciais,
que atraíam sobre si sangrentas represálias, resultando inúteis para
a obra definitiva. Por prudência,
Hanan foi deposto, porém continuou
exercendo sua influência durante o pontificado de Caifás,
seu genro.
Nas discussões dos artigos da lei, o princípio religioso, sobre o qual
descansava a mesma lei, era inexpugnável. Os chefes de escola
encontravam numerosos opositores, cujo objetivo era o de conduzi-los
para a negação e os fariseus
sobressaíam neste infame ofício. O
Sinedrim, tribunal sagrado,
julgava os delitos de lesa-majestade
divina.
Todas as infrações referentes à lei civil ficavam dentro do círculo
de atribuições dos tribunais ordinários. As penalidades ressentiam-se
da diferença estabelecida entre os delitos religiosos e os delitos
previstos pela constituição do Estado. O fanatismo tinha que
demonstrar-se mais desapiedado que o princípio da ordem social. Uma lei
decretada pelo poder romano castigava com a morte ao assassino e ao
bandido armados; porém sucedia freqüentemente que circunstâncias
habilmente aproveitadas pela defesa desviassem da cabeça do culpado a
terrível expiação.
Ante os príncipes dos sacerdotes e dos fariseus
toda a sublevação
ostensiva contra as prescrições do culto mosaico tinha por
conseqüência a morte. A lei era precisa,
inexorável. Nas causas
maiores, aos sessenta príncipes dos sacerdotes, fariseus e
doutores da
lei que compunham o Sinedrim, agregavam-se alguns membros suplementares.
Chamavam-se príncipes aos sacerdotes nobres de nascimento ou
reconhecida capacidade exercida de longa data (enobrecimento). O
farisaísmo era uma seita piedosa e respeitável em aparência,
hipócrita e depravada na realidade.
Os doutores da lei representavam a
casta mais erudita e mais inteligente da nação judaica. Dividiam entre
si as funções difíceis do apostolado e da magistratura sagrada. No
Templo eles exerciam a verdadeira autoridade, porquanto os sacerdotes
não eram mais que servidores autômatos, mais propensos às honras
mundanas e aos gozos materiais, que desejosos das prerrogativas da
ciência e da virtude. Nas sinagogas os doutores da lei faziam preceder
suas conferências de algumas incitações para a curiosidade, que se
referiam a tais ou quais personalidades.
Na vida privada davam conselhos
e na vida pública davam demonstrações de suas crenças com
eloqüentes discursos. As funções da magistratura sagrada os submetiam
aos deveres de juízes, de acusadores (1) e de defensores. O prestígio de
seu talento estabelecia convicções (2) e a marcha dos processos dependia
unicamente deles.
Irmãos meus,
as participações de Jesus nas
sublevações populares, que tiveram lugar quando tinha
vinte e quatro
anos de idade, foram uma conseqüência de sua educação e das idéias
religiosas que ele se empenhava em erigir como uma doutrina. Jesus era
revolucionário porque dizia: "Os poderes da Terra são mantidos
pela ignorância das massas".
Mas Jesus havia bebido o princípio democrático que o fazia agir no
princípio divino das alianças celestes; mas o democrático Jesus
queria a igualdade e a fraternidade entre os homens porque os homens
são iguais diante de Deus, que é seu Pai; mas o democrático Jesus
professava o desprezo pelas honras mundanas, porque essas honras
paralisam as manifestações que adquirem as honras espirituais, porque
apoiava o elevado destino do espírito sobre os deveres que incumbem a
este espírito, em sua marcha ascendente. O revolucionário Jesus
combatia a opressão, porque a opressão é contrária à lei de Deus;
porém, ordenava o perdão, porque o perdão encontra-se na lei de Deus.
O revolucionário Jesus amava os pobres, porque os pobres eram para ele
irmãos desgraçados, compadecia-se dos ricos, porque os ricos eram para
ele irmãos extraviados. O democrático Jesus dizia:
"Os poderosos deste mundo serão os párias do outro
mundo".
E dizia também:
"Amai-vos uns aos outros e meu pai vos amará. Na casa de meu
pai não há pobres nem ricos, nem patrões, nem servidores, senão
espíritos, cuja ciência aperfeiçoará sua própria virtude".
Aplicai, irmãos meus, as palavras de Jesus e sede revolucionários
como eu; é uma cousa heróica o sê-lo.
Povos e governos de povos,
deponde as armas e refleti finalmente no objetivo da existência
temporal.
Infelizes envilecidos, tenebrosos
negadores da Providência Divina, levantai-vos e adorai a Deus!
- Ricos, honrai a pobreza, e vós
outros, pobres, não invejeis as riquezas.
O poder e a grandeza humana
fazem decair o espírito não penetrado do poder divino e das grandezas
espirituais. A adversidade eleva o espírito que reconhece a justiça de
Deus. O espírito não pode adquirir a força senão por meio das provas
da vida corporal; o espírito forte torna-se em pouco tempo digno da
glória de Deus.
Expliquemos, irmãos meus, o caráter e o valor do
delito do desvio do culto divino imputado a Jesus. Desde tempo
imemorial, o culto divino é uma mistura de supersticiosas devoções e
interessadas mentiras. Desde tempo imemorial, têm existido homens que
têm demonstrado em nome de Deus que a razão deve submeter-se a todos
os erros grosseiros do sentido intelectual, para a edificação de tal
ou qual doutrina religiosa. Desde tempo imemorial, a força suprime o
direito, a noite devora a luz, e a ajuda de Deus é invocada pelos
assassinos e pelas trevas.
Deus é imutável. Novas sementes enchem o
vácuo; a luz se reproduz no meio das trevas; e a vida gerada pela
morte, a luz vitoriosa sobre a noite, depositam sobre a superfície de
um mundo os vivos do Senhor, os lutadores das verdades eternas. Isto
deve suceder, isto sucede e chama-se progresso.
Todas as humanidades
atravessam pelas fases da infância no meio de horizontes nublados,
todas as humanidades distanciam-se do objetivo e se detêm indecisas;
porém, então, luzes repentinas iluminam o caminho, o caminho volta a
ser empreendido e a verdade prepara seu reino definitivo, sob os olhares
e o apoio de Deus.
Jesus devia a preceptores ilustres seus primeiros
estudos sérios e tinha amadurecido seus meios de aperfeiçoamento, com
profundas meditações. Jesus devia a inspirações secretas, honradas
por demonstrações palpáveis, a revelação de sua missão divina, e
ajoelhava-se sobre o limite da pátria celeste para escutar as ordens de
Deus; com o pensamento, voava por cima dos séculos de ignorância para
facilitar aos séculos seguintes a luz e a felicidade. O espírito,
chegado ao desenvolvimento moral e intelectual, permanece fiel às
convicções adquiridas por ele mesmo, até que a ciência de Deus lhe
dê a imortalidade da força e o impulso do fanatismo para sacrificar o
presente ao porvir, para preparar o por- vir com o preço das mais
amargas desilusões humanas. O espírito desenvolvido em um mundo carnal
designa um Messias e este Messias não pode fugir da perseguição
senão desertando da causa a cujo amparo se tenha dedicado. Desprezando
a morte corporal, o espírito adiantado no caminho da perfectibilidade,
fraqueja também diante dos assaltos dos seres inferiores, e sua
confiança enganada, seu amor mal correspondido pesam-lhe como remorsos.
Permaneçamos, irmãos meus, na crença absoluta das forças
individuais, desenvolvidas com o exercício da vontade3. Permaneçamos
na afirmação da justiça de Deus, seja que ela se estabeleça com
provas ou com benefícios, porém afirmemos sobretudo com energia, a
liberdade dada ao homem, quer quando ele luta contra as pressões
desorganizadoras da alma, quer quando ele tenha que combater
principalmente contra as manifestações tumultuosas da ignorância e do
ódio. O espírito adiantado desliga-se das dependências humanas e
alimenta-se das forças de Deus, à medida que são melhor compreendidos
o nada da matéria e a extensão das possessões espirituais. Justiça
de Deus, glória a ti, tu és explicável e tudo explicas.
Justiça de
Deus, honra aos que te dedicam sua coragem e sua resignação; eles
marcham pela via afortunada do engrandecimento da dignidade do
espírito.
Jesus, irmãos meus, tinha consciência de seus atos e a
força de sua sincera natureza, quando acusava os sacerdotes e os
fariseus. Compenetrado do respeito pelo culto divino, porém contrariado
em seu respeito pela avidez e arrogância dos ministros desse culto,
pela hipocrisia oficial de uma seita religiosa com grande poder, Jesus
procurou na mesma origem do culto e na inexata ponderação dos deveres
humanos, as verdadeiras causas da dissolução moral e das vergonhas
intelectuais que ele ia notando. Nesta investigação Jesus viu-se
ajudado por trabalhos anteriores aos seus e por ligações novas ou
renovadas na vasta associação dos espíritos e dos mundos.
Jesus
absteve-se a princípio de investigar os mistérios da religião
mosaica, depois deixou-se arrastar por opiniões que correspondiam ao
seu sentido moral; logo depois, circunstâncias cada vez mais
favoráveis à sua missão abriram-lhe o caminho entre os escombros que
ruíam e as pedras brutas do porvir.
Jesus compreendeu que era necessário conservar alguns vestígios do
passado para não encontrar obstáculos à sua tarefa de construtor; mas
a miúdo faltava-lhe a paciência e dizia:
"Não se podem fazer roupas novas com panos velhos".
Jesus adorava a seu pai em espírito e em verdade, e quando o povo
ignorante pedia-lhe explicações, respondia:
"Deus não tem senão desprezo para os oferecimentos e para as
práticas exteriores, quando não as acompanham a virtude e a força
dimanada da ciência.
"Deus proíbe o orar somente com os lábios,
e os que entram em uma sinagoga com o coração cheio de ódio e com as
mãos sujas pela rapina e o sangue, merecem o castigo de Deus.
"Permanecei humildes e pacientes sob o peso da vida mortal.
Amai-vos uns aos outros, libertai vossa alma dos laços vergonhosos,
vossos espíritos das ambições injustas, e tereis servido a Deus e
Deus vos abençoará neste mundo e no mundo que para vós outros
sucederá a este.
"Deus quer vossos corações por templo; adorai a
Deus no templo por ele escolhido.
"As funções do culto põem em
evidência, as mais das vezes, a incapacidade, a vaidade e a hipocrisia.
"A adoração interna conduz sempre o espírito pelo caminho da
simplicidade, da doçura, da sabedoria.
"Vós podeis orar juntos,
porém não façais pompa com vossas orações e não mistureis as
pompas mundanas com as cousas de Deus". (4)
Irmãos meus, Jesus explicava Deus com a elevada inteligência que de
Deus lhe vinha, porém bem sabia que não podia preservar-se dos ódios
e vinganças dos que ele acusava por seu orgulho e picardias, dos que
estavam compreendidos em suas demonstrações.
Jesus definia o amor como
o grande motor da religião universal, e ensinava a igualdade dos
espíritos, a comunidade de seus interesses perante Deus, o
desenvolvimento, o emprego das faculdades pensantes. Combatia portanto
os poderes fundados sobre o desprezo das leis de Deus e a imobilidade do
espírito decretada por estes poderes.
As religiões baseadas sobre a
divindade de Jesus, do mesmo modo que todas as doutrinas alheias a essas
religiões, estão impregnadas de defeituosas apreciações a respeito
de Deus. Para que uma religião seja a fonte definitiva da felicidade
humana, é necessário que ela seja a conseqüência da própria razão,
essência de Deus. Façamo-nos novamente fortes com a enunciação do
elemento constitutivo da razão divina e da razão humana em sua pureza.
A razão divina é a preponderância do amor na obra da criação. A
razão humana, firmemente estabelecida, é a emulação do amor que o
Criador espalha sobre a criação. A justiça divina é uma
conseqüência do amor divino; os efeitos desta justiça demonstram o
infalível raciocínio de um poderoso trabalho de concepção infinita.
Que os mundos formados para determinadas categorias de espíritos,
recebam outros mais desmaterializados que o que comporte a generalidade;
que as moradas humanas abriguem, de tempos em tempos, luminosas
inteligências; que as provas carnais representem uma cadeia contínua
de intermitências de repouso e de espantosas catástrofes, que importa, desde o momento
que a justiça de Deus é a que resolve e é o amor que dita sua
justiça! Que importa, desde o momento que os Messias expressam o amor
de Deus para todas as inferioridades e que os sofrimentos humanos
representam atos de reparação para a justiça de Deus.
Jesus, já o
disse, fustigava os poderes estabelecidos pelo esboroar das
consciências e pelo abuso da força e encontrava em si o mais ardente
patriotismo da alma, para abater todos os despotismos e para
compadecer-se de todas as misérias da Humanidade. Mas os inimigos de
Jesus afirmavam que ele havia atacado o dogma da unidade de Deus, ao
dizer-se filho de Deus e que havia enfraquecido a fé religiosa
favorecendo a revolta. Aqui, irmãos meus, vamos resumir os principais
ensinamentos de Jesus; mas não volveremos sobre o caráter de filho de
Deus, tão mal interpretado em todos os tempos e que já expliquei
suficientemente.
Quando Jesus deixou Jerusalém pela primeira vez e foi
a países distantes, adquiriu a certeza de que as religiões não
dividiam esses povos, porquanto o amor das artes e das riquezas obtinha
a preferência respectivamente a qualquer outra aplicação do
espírito. Quando Jesus abandonou Jerusalém pela primeira vez, viu-se
livre e feliz no meio dos povos livres e cheios de fantasia. Ele
começou proporcionando abundantes consolos e manifestando seu caráter
afável e expansivo. De sua doutrina, expôs somente o que era
necessário para estabelecer o amor como base do equilíbrio humano,
porém não determinou o amor como uma obrigação do completo
sacrifício, desde que sabia muito bem que, para homens extenuados pelos
gozos mundanos, devia fazer concordar a habitual expansão de seus
espíritos com as primeiras exigências da razão do espírito.
Jesus
tornava indispensável o amor pela necessidade que tinham os homens de
ampararem-se uns aos outros. Acaso o amor não protegia os interesses do
pobre, assim como defendia o rico contra os insensatos desejos de
igualdade material?
Jesus definia a esperança como um remédio para
todos os males. Dirigia os olhares do espírito para a felicidade do
porvir, com palavras de misericórdia e de alento. Ele fazia da morte
uma luminosa transformação. Pelo espaço de dois anos Jesus evitou as
críticas do mundo frívolo e a desconfiança da gente séria. De bom
grado escutava-se ao doce profeta, que prometia a abundância aos que
proporcionassem alívio aos pobres, que concedia o perdão de Deus aos
que perdoassem aos seus inimigos, que anunciava a paz e a felicidade
para todos os homens de boa vontade, em nome de Deus, Pai deles.
Seguiam-no nos lugares públicos e na plataforma dos edifícios, ao
atraente revelador dos destinos humanos, que explicava a igualdade
primitiva e a beatífica imortalidade. As jovens levavam-lhe seus filhos
e ele os abençoava; os enfermos o mandavam buscar e ele se aproximava
deles; os pobres tomavam- no como arrimo e os ricos se detinham para
ouvi-lo pregar a fraternidade e o desinteresse. Oferecia-se sempre
generosa hospitalidade ao dispensador da graça de Deus e, tanto nas
famílias como no meio do povo, Jesus convertia-se no pai, no amigo, no
conselheiro e na alegria dos pagãos, aos quais jamais falou do castigo
e da cólera divina.
Ele guardou a lembrança consoladora desse tempo no
meio da agitação e da tristeza que, mais tarde, o oprimiram. Mas Jesus
não podia chamar a atenção do espírito humano sobre as pessoas que o
rodearam nesse tempo, e isto porque o espírito humano não teria nenhum
fruto que colher do conhecimento das intimidades de Jesus, quando essas
intimidades não se encontram ligadas a acontecimentos conhecidos ou que
mereçam sê-lo. Conheceu a João, pela primeira vez, na idade de trinta
anos e na de trinta e três anos e alguns meses, morreu. João dissipou
as irresoluções de Jesus a respeito de sua missão como filho de Deus,
e ele prometeu a João que se sujeitaria a algumas práticas externas,
se sobrevivesse ao apóstolo, o que mereceu do apóstolo as seguintes
palavras:
"Eu sou o precursor, tu és o Messias.
"Esperava-te para
continuares a obra e torná-la imortal.
"Agradeçamos a Deus que
nos reuniu, e fundemos o porvir com o preço das tribulações e das
torturas da morte. As tribulações, a morte, serão nossos títulos
para a glória imensa, para o poderio eterno".
João morreu assassinado pelos que ele havia apontado ao desprezo do
povo, um ano depois da sua entrevista com Jesus.
Este quis então tomar a direção dos discípulos de João e
juntá-los aos seus; porém teria que vencer a obstinação de
espíritos sem capacidade e sem grandeza moral pelo que se viu obrigado
a renunciar a isso. Jesus o havia dito: seus discípulos de Galiléia
somente mais tarde o compreenderam, e sua conformidade verdadeira na fé
não teve lugar senão depois da morte daquele que abandonaram, quase
todos, no caminho da dor. Mantidos na gratidão pelo respeito que
professavam para com a memória de seu mestre, os discípulos de João
seguiram-me a distância e deram-me provas de afeto. Dois anos
consecutivos trasladei-me às margens do Jordão para observar o jejum e
dar a costumada solenidade às práticas de João. Das duas vezes fui
acompanhado pelos discípulos de João, cujo número não havia
diminuído. Eram quinze e o mais velho presidia as reuniões da
doutrina, com o recolhimento a que o havia acostumado seu preceptor de
prudência e saber. Estes homens sóbrios e severos davam à virtude as
lúgubres aparências de vinganças celestes; depositários da vontade
de João, tinham que sofrer pelas contradições que resultavam entre
eles e nós. Eles queriam a exterioridade da contrição, o rigor da
forma, a evidência do culto, nós a humildade na penitência, a prece
do coração, a liberdade dos exercícios religiosos, a abstenção
completa de pompas nos sacrifícios e método nos ensinamentos.
De
nossos hábitos, de nossa existência alegre com relação à deles, os
discípulos de João não tiravam induções tristes para o porvir e
continuaram chamando sempre Messias a quem seu mestre havia designado
com o nome de Messias.
Repito,
os discípulos de João demonstraram-se
muito superiores aos discípulos de Jesus. Deixando de lado o fanatismo
que afastava o pecador da esperança em Deus e o exagero censurável das
práticas, eles possuíam todas as qualidades do espírito que
determinam a inviolabilidade da consciência. Os
discípulos de João
não me acompanharam durante os dias nefastos que precederam ao meu
suplício, porquanto encontravam-se dispersos e errantes.
Um decreto
lançado contra eles, quando me encontrava em Betânia, tinha-os
expulsado da Judéia. A perseguição religiosa foi sempre em
progressão desde essa época, ela anunciava a ruína de Jerusalém e a
decadência do povo hebreu. Minhas instruções, desde a separação de
João até minha partida para Cafarnaum, provam os meus conhecimentos da ciência
divina, posto que dirigia-me a homens capazes de me compreenderem. Estes
homens, desgraçadamente, eram tímidos aliados ou déspotas depravados,
e os primeiros não me podiam amparar senão com a ajuda do povo.
Apoiar-me no povo teria sido, tenho disso, hoje, a convicção, criar-me
segurança, durante o tempo necessário, para a fundação de minha
glória humana como Messias e revelador da lei universal. Cometi um
grande erro ao afastar-me de Jerusalém, e deste erro dimanam as
superstições que têm mantido desviados os espíritos do propósito
latente de todas as humanidades; a adoração de um só Deus, o amor
fraterno, o progresso na adoração e no amor. Dos ensinamentos de Jesus
nessa época, deduzimos que o pensamento que neles dominava, destruía,
desde cima até a base, os preceitos da antiga lei para substituí-los
pelos da nova. Pronunciaram-se então estas palavras:
"A luz vem de Deus e eu sou a luz. Deus pôs em mim todas as
esperanças, no sentido de que a verdade se faça evidente para vós.
"Felizes os que compreendem a verdade. O homem não seria homem, se
não tivesse aprendido alguma cousa antes de nascer. Fazei-vos sábios
para descobrir o que precedeu à vossa atual existência. O futuro vos
será revelado pelo conhecimento que adquirirdes de vosso passado.
"Crede na purificação por meio das provas e jamais duvideis da
misericórdia divina; porém guardai bem isto: A purificação opera-se
lentamente e a misericórdia divina não poderia contrariar a lei da
organização e da desorganização.
"Segui minha lei. Ela diz:
Orai em segredo, perdoai a vossos inimigos e ajudai a vossos irmãos.
"Repetir-vos-ei sempre: O que abandona o pobre será por sua vez
abandonado. O que mata será morto, o que amaldiçoa será amaldiçoado.
Isto é um segredo divino que explica-se, não em uma vida mas em muitas
vidas.
"Defendei-vos das superstições inferiores da infância dos
povos, que assimilam a Deus com os membros da
humanidade, (5) e adorai a
vosso Pai, sem pedir-lhe que altere cousa alguma de seus desígnios.
"Os homens de boa vontade levantarão um templo a Deus e o reinado
de Deus se estabelecerá sobre a terra. Digo- vos: Muitos de entre vós
verão o reino de Deus; mas compreendei bem minhas palavras; estas
palavras são de todo o tempo, porque o espírito é imortal; a vida
sucede à morte; a luz dissipa as trevas; o santo nome de Deus será
bendito por toda a Terra.
"Afastai-vos dos falsos profetas.
Reconhecê-los-eis facilmente. Eles anunciam sempre a fome, a peste e
todos os flagelos. Invocam a cólera de Deus sobre os que tenham
prevaricado e sobre os homens que investigam os desígnios deles, para
dar a conhecer sua velhacaria. Afirmam que Deus protege seu poder e
afetam grandes aparências de virtude, enquanto que seu coração
encontra-se sobrecarregado de ódios. Agora vos digo: Deus não tem
senão amor para suas criaturas. Ele castiga-as sem pesar para
conduzi-las ao arrependimento. Todos colhem em um tempo o que tenham
semeado em outro tempo. Todos devem cuidar da sementeira, para que o bom
grão não seja abafado pela erva má. Segui a lei de amor e Deus
falará a vossos espíritos e vos mandará mensageiros de seu amor. A
graça de Deus é obra de justiça.
"Felizes os que desejam a
graça e saibam merecê-la. A verdade lhes será revelada e eles a
espalharão para confundir os maus e os hipócritas, para instruir os
ignorantes, para consolar os pobres e os pecadores, para facilitar aos
justos os meios de fundarem o reino de Deus sobre a Terra.
"A verdade se recomenda por si
mesma, desde que fala em nome da
razão, da igualdade, da fraternidade e da imortalidade, pois que
demonstra a felicidade futura, apoiando suas demonstrações na
justiça, no amor, na sabedoria do Criador; pois que ela separa a
justiça de Deus das ferozes vinganças, o amor de Deus das fraquezas
das predileções, a sabedoria de Deus das indecisões e inconstâncias
da vontade."
Irmãos meus, estas instruções, todas elas cheias da chama divina,
estas expansões de um espírito penetrado das grandezas espirituais
tinham de resultar bastante incompreensíveis para muitos homens, mas
estes homens compreendiam a oposição que eu lhes fazia e a todos os
abusos de autoridade e amavam-me por isso; mas estes homens diziam que
eu era o Messias anunciado pelos profetas e criam em mim. Se eu houvesse
consentido em deixar-me rodear e defender e, não obstante meus triunfos
populares, houvesse permanecido senhor de mim mesmo, minha morte,
inevitável resultado da volubilidade das opiniões humanas, teria sido
a consagração da aliança dos mundos e dos espíritos.
Nos
preparativos de minha alma para sofrer esta morte, travaram-se grandes
lutas dentro de mim mesmo. - Devia eu revelar publicamente minha
ciência ou deixar a meus fiéis o encargo de divulgá-la? - O silêncio
que guardei acusa-me de uma culpa, não muito grave, qual a de haver
abandonado Jerusalém quando era necessário permanecer ali.
Eu devia ter gravado meu aspecto de Messias sobre o porvir, enchendo
de espanto a meus verdugos, com palavras que eles teriam sido impotentes
para corromper. Eles, do mesmo modo que os propagadores de minha origem
celeste, não teriam podido demolir um conjunto de princípios por mim
desligados dos erros das primeiras apreciações, e das contradições
estabelecidas dentro do propósito da segurança necessária.
Dediquemos, irmãos meus, uma atenção séria às faltas de Jesus.
Elas dão a medida das concepções do espírito espiritualizado, porém
circunscrito pelas enfermidades humanas; põem em evidência a justiça
eterna que concede ao missionário a livre direção de sua tarefa; provam a
cegueira da clarividência, a
fraqueza da força, a decadência da superioridade, pelo efeito de duas
naturezas opostas no mesmo ser. Jesus arrastou o peso destas duas
naturezas, e se alguma vez sucumbiu sob a pressão de correntes opostas,
sempre se levantou depois da queda, fortalecido pelo pressentimento de
sua próxima glória.
Em Cafarnaum e seus arredores, tantas e tantas
vezes percorridos por mim, meus ensinamentos se haviam colocado ao
nível das pessoas às quais me dirigia. Comecei, a princípio, com
máximas isoladas e com conselhos aplicáveis a todas as situações
morais e a todos os sofrimentos físicos. Ninguém em Galiléia se
ocupava da medicina propriamente dita, porém todos os homens que
queriam estar no apogeu para com o povo, deviam estabelecer sua
superioridade sobre o mesmo com demonstrações ostensivas de alguma
ciência, e a arte de curar era o que excitava, no mais alto grau, a
emoção popular.
A Natureza oferecia-me em abundância, nesses campos,
plantas preciosas, e guiado por alguns estudos anteriores, obtive
êxitos, que mais tarde se tornaram como milagres e exorcismos. Com meus
discípulos empreendi excursões nos arredores de Cafarnaum. Visitei
sinagogas, estudei a capacidade intelectual do povo e fiz uso, para
fazer-me estimar, de uma doçura familiar, que me impelia tanto para as
festas quanto para a procura de enfermos e de gente abandonada.
Minhas
parábolas se inspiravam nas próprias paixões de meus ouvintes, por
meio de um estilo imaginativo e breves comparações. Minhas
descrições dos tormentos do inferno, meus êxtases pelas belezas do
céu, os exaltavam e acreditavam-me então quando lhes dizia:
"Os que me amam me seguirão e eu os conduzirei à verdadeira
vida.
"Eu sou o bom pastor. Quando o bom pastor se apercebe que uma
ovelha se extraviou, deixa por um momento as outras ovelhas para
procurar a que se perdeu e a conduzir ao aprisco.
"Pedi, e
dar-se-vos-á. Batei, e abrir-se-vos-á. Eu sou o distribuidor das
esperanças e das consolações."
Eu misturava com freqüência o que se encontra, entre linhas, na
Doutrina pura com os dogmas ortodoxos; porém nas instruções mais
íntimas, livrava a Doutrina das obscuridades de que a via rodeada. O
anúncio do reino de Deus tornou então a figurar com freqüência em
meus discursos e repisei com energia as seguintes palavras:
"Muitos dentre vós verão o reino de Deus."
Repito, irmãos meus:
"O reino de Deus se estabelecerá sobre a terra e muitos de vós
verão o reino de Deus".
Por que deram às minhas palavras um significado absurdo? - Para
descobrir-me em erro ante a presente geração e ante a posteridade.
Mas, encontrando-se já claramente definida agora minha doutrina, dai
lugar aos homens de boa vontade, vós outros homens intrigantes, homens
de má-fé! - Dai lugar à verdade, ela trará novamente à Terra o
reinado de Deus!
No décimo quinto capítulo seguiremos os dias
dolorosos que levaram Jesus até o Calvário e assistiremos ao grande
ato da expiação dos delitos de Jesus.
No capítulo décimo sexto nos
ocuparemos da glória do Messias e diremos os motivos que o estimularam
para revelar-se agora. Irmãos meus, eu vos abençôo.
_________________
(1)- Equivalente aos
nossos promotores públicos.
(2) - Quer dizer que o
talento deles formava a convicção do público a respeito da
culpabilidade ou inocência dos acusados. - Nota do Sr. Rebaudi
(3) - Quer dizer que devemos confiar em nossas próprias forças e
trabalhar pelo desenvolvimento delas, sem esperar tudo de Deus. O que
realmente apalpamos é o resultado de nossos esforços, resultados nos
quais precisamente se manifesta a justiça de Deus, dando a cada um o
que merece, o que é por certo, sobre todos os pontos, contrário à
doutrina da graça, sustentada pelos católicos e pelos protestantes. -
Nota do Sr. Rebaudi.
(4) - A prece não deve ser motivo de exibicionismo, pois isto
significaria um contra-senso. Que motivos de elogios ou que brilho pode
comunicar-nos o fato da manifestação implícita de nossa fraqueza e de
nosso desejo de proteção, ao dirigimo-nos humildemente, em súplica,
perante o Altíssimo? - Porém é que até da humildade, quer dizer, da
virtude que implica o reconhecimento da nossa inferioridade, se faz um
motivo de exibicionismo. Isto é prova evidente do assombroso atraso em
que ainda vegetam muitos espíritos que se prejudicam olhando para trás
em lugar de fazê-lo para a frente e para cima. Quanto ao de aumentar
eficácia à oração por meio de pompas mundanas, como sucede com o
aparatoso culto exterior do catolicismo, é mais ridículo ainda, porque, sendo
o orar uma ação exclusivamente espiritual, nada tem que ver com tudo o
que não seja obra do espírito, como o incenso, o tanger de campainhas,
todo o ouropel amontoado ao redor dos que oram ou deviam fazê-lo, e as
complicadas manifestações do ritual católico. Se fizéssemos tanta
farsa ao redor de nossos pais carnais ou de nossos superiores, ao
pedir-lhes algo, positivamente nos expulsariam sem consideração
alguma. Além disto não deve esquecer-se que a oração não consiste
precisamente em pedir e sempre pedir, não: A oração é a elevação
do nosso sentimento para Deus. - Nota do Sr. Rebaudi.
(5) - O texto (em italiano) diz: "assimilano Dio agli aderenti
delle umanitá"; e traduzido literalmente não teria significado. O
que lhe dou na tradução (em espanhol) é o da idéia que quer
manifestar e que se refere aos deuses antropomórficos, com alusão
evidente aqui ao próprio Jesus, em quem se quis ver a Deus convertido
em um membro da Humanidade. - Nota do Sr. Rebaudi.
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FIM
DO CAPÍTULO 13