Irmãos meus, o limite que fixei para este trabalho não me obrigará
ao silêncio, se algum de vós tiver o desejo de maiores esclarecimentos
ou de uma nova confirmação dos fatos que vos tenho referido. Em
segundo lugar, o curso dos acontecimentos até o final deste livro me
dará motivos para numerosas digressões com respeito ao assunto que
nele se desenvolve. Nós limparemos o caminho e aplanaremos o terreno;
semearemos por Deus. Edificaremos a casa de nossos filhos na luz e
acumularemos riquezas para eles, derramando tesouros divinos sobre as
riquezas humanas. Revelemo-nos tanto pela simplicidade de nosso estilo,
como pelo ardor de nosso amor. Expliquemos nossa defesa diante dos
homens que nos acusam, nossa força diante dos que nos negam, nossa
afetuosa piedade ante os que deformam nossa personalidade. Digamos-lhes
a todos, infelizes ou culpados, ignorantes ou malvados:
"Aproximai-vos, amigos meus, dar-vos-ei a felicidade de crer em
Deus nosso Pai, princípio e adorável fim da criação, aliança e
movimento das invisíveis harmonias e incomensuráveis grandezas do
Universo.
"Demonstrar-vos-ei a superioridade gradual e a afinidade
dos espíritos entre eles, a diversidade dos elementos e a superioridade
absoluta da direção dos globos planetários, dos fosforescentes astros
errantes, das reconstituições luminosas, do decrescimento e da
regeneração dos mundos.
"Ensinar-vos-ei a vida espiritual na
matéria e fora da matéria, contar-vos-ei minhas dúvidas, minhas
esperanças, minhas faltas, minha gloriosa coroação, o martírio de
minha alma, o triunfo de meu espírito, as lutas de minha natureza
carnal com as aspirações do meu pensamento, a tendência humana
ardendo em meu coração completamente cheio de desejos de uma pureza
imortal. Descrever-vos-ei a Jesus como o mais adiantado dos Messias
vindos à Terra e farei resplandecer a casa de Deus, livre de toda a
superstição filha das criaturas; conduzir-vos-ei ao sentimento do
dever e vos convencerei da felicidade que espera aos fortes, humildes e religiosos
observadores das leis de Deus.
"Ao ouvir minha voz sereis
consolados, vós que chorais, e caminhai sob minha terna proteção, ó
vós que gemeis no isolamento e na ingratidão, no abandono e na
injustiça, no esgotamento das forças físicas e na amarga sensação
da lembrança e do remorso! Eu quero minar toda a crença no
maravilhoso; fazendo-me conhecer tal qual sou e afirmando a graça como
um efeito da justiça divina".
A graça é o benefício da força; a força resulta do progresso do
espírito e todos os espíritos se elevam por meio das provas da vida
carnal, quando compreendem seus ensinamentos. Jesus, desde a felicidade
espiritual para a qual o conduziram os opróbrios humanos, teve que
preparar seus direitos a uma glória cada vez mais luminosa, e assim
sucederá a todos os que chegam ao desenvolvimento das forças por
intermédio da vontade.
Neste capítulo, irmãos meus, teremos que expor
a doutrina pura de Jesus, fazendo notar as manchas impressas nesta
doutrina pelos sucessores de Jesus e pelo próprio Jesus em sua última
estada em Jerusalém.
Rodeado em Betânia de seus amigos mais queridos,
Jesus não lhes abriu bastante o caminho do porvir mediante um amplo
desenvolvimento de sua doutrina e em Jerusalém cometeu o erro de não
se proclamar o fundador de uma nova religião. Jesus tinha que repudiar
toda a coesão com o povo judeu e morrer afirmando sua fé sobre outros
princípios, que não eram os da lei mosaica.
As palavras de sentido
ambíguo, as palavras desprovidas de elevação, porque derivavam da
vida exata e regular de povos laboriosos, os discursos obscuros, a
sublime teoria da igualdade, da fraternidade, da liberdade individual,
que parecia até então urdida com pouca habilidade, e a organização
viciosa e incorrigível da sociedade humana, tudo tinha que desaparecer
e iluminar-se em meio dos últimos preparativos da separação. Ai de
mim! Deus foi testemunha das dores de minha alma, dos arrependimentos de
meu espírito; mas ele consolou a minha alma com sua força e reservou
para meu espírito o encargo de um perfeito cumprimento. - Regozijo-me
das trevas ao sair das deslumbradoras luzes! - Quero desafiar o
desmentido brutal depois de haver deixado os eflúvios do amor independente e generoso,
entrego-me à humanidade terrestre para despedaçar suas cadeias e
mostrar-lhe seu Criador!
Coloquemos debaixo de nossos olhos as
semelhanças que existem entre a época das provas humilhantes de Jesus
e os tempos de espantosas e convulsivas torturas do estado social. A
desconfiança do povo de Jerusalém apoiava-se nas provas que se lhe
davam a respeito de minhas contradições. Minha firmeza em rechaçar
toda a participação nos fatos milagrosos que se me haviam atribuído,
influiu ainda mais para aumentar a desconfiança do povo. - Por que,
repetia o povo, permitiu ele que o apresentassem como um curador
inspirado, quando afirma agora não haver curado ninguém de um modo
sobrenatural?
José e Andréia atribuíam-se a honra, por troça, de
serem os filhos de Deus; Maria, minha mãe, parecia oprimida pela
vergonha e o desgosto; as mulheres que me acompanhavam tremiam,
escudando-me com seus corpos, e meus novos amigos interpunham-se entre a
multidão irreverente e meus discípulos de Galiléia. Tais foram os
preliminares de uma justiça que se fez forte com o grande nome de Deus,
para ir contra o seu Messias e contra os interesses de seu povo, para
abater o defensor do povo.
Hoje, irmãos meus, a doutrina de Jesus, mal
compreendida no princípio, tanto pela natural fraqueza de Jesus, como
por efeito de seus mais zelosos defensores, A DOUTRINA DE JESUS, REPITO,
É MAL CONHECIDA ATÉ O PONTO DE QUE JESUS É UM DEUS PARA ALGUNS, UM
LOUCO PARA OUTROS E UM MITO PARA OS DEMAIS. Os homens que se julgam
capazes de dirigir a Humanidade discutem o poder soberano ou não falam
dele jamais; os de espírito mais independente se inutilizam nas orgias,
ou dão demonstrações de si com ações miseráveis; os menos
irreligiosos sustentam todas as instituições em opróbrios ao Deus de
amor e de paz; e a NEGAÇÃO DE MINHA PRESENÇA AQUI DESCANSA NA
PRETENDIDA IMPOSSIBILIDADE DAS RELAÇÕES ESPIRITUAIS. Neste dédalo de
negras heresias, de desprezíveis defecções, de absurdos erros,
domina, como nos dias da revolta do povo de Jerusalém contra Jesus, o
louco orgulho das paixões inconscientes e o desafio de delinqüentes
concupiscências. Jesus, preparado para a luta e profundamente
convencido de sua missão divina fazia depender demasiado sua coragem, da coragem dos que ele
amava, e a idéia democrática bebida por ele em um sentimento religioso
exaltado, porém sensato, não se levantava o suficiente acima das
alegrias do coração. A ingratidão, o abandono, a calúnia encheram a
alma de Jesus de uma altaneira compaixão e selaram seus lábios quando
justamente houvera sido da maior habilidade o anunciar a religião
universal a todos os povos da Terra. (1)
Neste momento Jesus olha para a
Humanidade, presa toda ela, parte ao ateísmo e parte à superstição,
e por mais que ele se sinta tão maltratado pelos céticos quanto pelos
relaxados e pelos hipócritas, permanece impassível no poder da idéia,
na força da ação, as quais não estão já sujeitas às fraquezas da
natureza humana. O amor torna-se uma força de entidade espiritual, e se
do ensinamento prático de sua vida de abnegação, Jesus não pôde
alcançar as honras populares com que contava, nem por isso resulta
menor o doce apoio dos pobres e dos humildes, o juiz severo dos
prevaricadores e dos conquistadores.
Ditemos as principais passagens das
últimas predicações de Jesus e tiraremos em conseqüência que as
falsas avaliações provêm sobretudo das omissões e das referências
apócrifas.
Quando ele quis dar testemunho de seu prestígio de filho de
Deus em Jerusalém, pronunciou estas palavras:
"Eu sou aquele que meu pai enviou para dar-vos sua lei; quem
quiser me seguir verá Deus. Eu caminho pela estrada da verdade e a luz
resplandece em mim.
"Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis.
Isto quer dizer que Deus é uma ciência e que responde aos que
trabalham.
"Estudai a origem dos males e as dos benefícios e
reconhecereis a justiça de Deus.
"Afastai-vos do orgulho e dos
tumultos da Terra para interrogar a Deus e ouvir o que vos responderá.
"Eu sou o filho de Deus, porém esta honra foi merecida por mim
e vos digo: Todos os homens de boa vontade podem chegar a ser filhos de
Deus.
"Não me pergunteis aonde vou nem de onde venho.
"Somente meu Pai conhece meu porvir, e meu passado permanece oculto
para mim, enquanto o pó que envolve meu espírito se mistura com o pó
dos mortos.
"Destruí em vós o homem velho e deixai falar o homem
novo. Enquanto existir em vós algo do homem velho, as paixões serão
mais fortes e o vento soprará sobre vossos projetos.
"Humilhai-vos
diante de Deus e não procureis o domínio entre os homens.
"Arremessai para longe de vós as cousas inúteis e cumpri a lei do
amor.
"Diminuí vossos gastos para socorrer os pobres; o que tudo
tenha dado aos pobres será rico na presença de Deus.
"Levantai
longe daqui vossa vivenda; posto que, vos digo, o homem é viajante
sobre a Terra. Sua família espera-o; sua família o seguirá em outro
lugar e terá ainda que trabalhar para reparar as perdas presentes.
"Não enfraqueçais vossa fé, com investigações estéreis, (2) com
uma passagem mais estéril ainda, mas praticai os mandamentos da lei de
Deus e a luz chegará a vós, pois que a luz é um olhar de Deus.
"Todo aquele que cumpra a lei e deseje a luz, conquistará a
ciência, não essa ciência banal que resolve todas as cousas deste
mundo, senão outra ciência que tudo explica.
"Felizes os que
compreendem estas palavras. "Felizes os homens de boa vontade, o
reino de meu Pai lhes pertencerá."
Com estes sermões, alheios a toda a ortodoxia, os doutores da lei
ameaçaram fechar-me as portas do templo.
Se o povo me houvesse parecido desejoso de conhecer a definição da
ciência e da luz, das quais falava, eu teria desafiado a proibição e
teria feito valer os direitos de um professor religioso que não atacava
nenhum dos dogmas reconhecidos, porém as más disposições do povo me
surpreenderam e resolvi retirar-me para Betânia.
Durante o período
transcorrido entre a primeira defecção do povo e os atos atrozes de
que o mesmo povo foi autor, Jesus não estabeleceu limites às suas
expressões e o mesmo sentimento de sua elevação inspirava-lhe
ímpetos de furor e profecias de desastres. Ele fustigava a seu gosto
aos que chamava hipócritas e perversos, e apontava com antecipação,
quase como para oprimi-los depois com o terror, os frágeis no amor, os
indecisos na fé, os desconfiados, os ingratos, a toda essa massa de
ignorantes e vis que haviam de oprimir seu corpo, semear a indecisão em
sua alma e enfraquecer, quase, sua confiança em Deus.
"Sois sepulcros caiados, a ferrugem e os vermes corroem seu
interior.
"Possuís roupas, os pobres encontram-se desnudos, e vós
rides quando as crianças choram de frio e de fome.
"Andais
anunciando em altas vozes vossas obras, entretanto no interior de vossas
casas escondem-se a orgia e o delito.
"Denunciais ao mundo a mulher
adúltera e enganais a Deus com as aparências de castidade, enquanto
vosso espírito encontra-se turbado por desejos impuros e ambições
desonestas.
"Condenais o vício dos pobres, porém guardais
silêncio a respeito dos escandalosos excessos dos imperadores e do
vergonhoso servilismo dos cortesões.
"Chamais a vós mesmos os
sacerdotes de Deus, os privilegiados do Senhor, e amontoais riquezas
sobre riquezas e incensais aos déspotas e conquistadores.
"Eu sou
o Messias, filho de Deus, e vos anuncio que este templo será
destruído, que não ficará pedra sobre pedra de vossos edifícios; uma
nova Jerusalém se levantará sobre as ruínas da antiga; vossos
descendentes procurarão o lugar onde se exercitava vosso poder e os fastos de vosso orgulho se desvanecerão como uma sombra.
"Quer
me decreteis honras, quer me condeneis à morte, meu nome sobreviverá
aos vossos e a lei que trago prevalecerá sobre a que vós predicais,
sem cumpri-la.
"Hipócritas, que tendes a boca cheia de mel e o
coração cheio de ira e de ódio. Déspotas, assassinos sem fé, vil
manada de escravos encarcerados durante a noite, covil infecto de
animais venenosos, desprezível caterva de gente embrutecida e
depravada, sois o mundo que está por terminar e eu proclamo um mundo
novo, uma terra prometida, a verdade, a justiça, o amor. Intérpretes
de um Deus vingativo, implacáveis provedores da morte, a ciência da
imortalidade dir-vos-á a todos que Deus é bom e que a vida humana tem
que ser respeitada."
No meio de outros excessos de
linguagem, Jesus acusava os pobres de
seguir uma miséria aviltante, sem combatê-la com o trabalho e com as
economias do trabalho.
"Desejais o descanso e passais o tempo no ócio e na embriaguez.
Detestais vossos patrões, porém invejais sua fortuna, e se vos
encontrásseis em seu lugar, procederíeis como eles, porque não
possuís a fé que proporciona a coragem no meio da pobreza e a
modéstia no meio da opulência.
"Queixai-vos do orgulho e da
crueldade dos ricos, e eu digo-vos que vós tendes a alma encouraçada,
o espírito prevenido, próprio das naturezas baixas e ciumentas.
"Os que entre vós estão compreendidos no nada das riquezas e na
lista dos pobres, serão os primeiros no reino de meu pai; mas, repito,
embora muitas vezes o tenha dito: Muitos serão os chamados, porém
poucos os escolhidos.
"Opróbrio para os comerciantes de má-fé; o
roubo, sob qualquer nome que se disfarce, é uma falta ante as
prescrições mais elementares da lei divina; somente a restituição e
a caridade podem descarregar a consciência do depositário infiel, do
mercador desleal, do falsário, do homem ambicioso e injusto.
"Pecadores de todas as condições,
homens de todos os tempos, a moral encerra-se nestas palavras: Fazei aos
outros o que quereríeis que fizessem a vós.
"Para trás,
traficantes das cousas santas no templo do Senhor!
"A casa de meu
Pai é uma casa de oração e vós a converteis em covil de ladrões.
"Retirai-vos, retirai-vos, vos digo, deste lugar de paz e de
retiro.
"Os sacrifícios de carne são ímpios; a prece é um
perfume da alma, um brado do coração, um arrependimento do espírito,
que os tumultos do mundo não poderão aproximar-se-lhes sem afastá-lo
de Deus.
"Ai de vós e de todos os que desviarem de seu verdadeiro
objetivo as obras do Criador! Ai de vós e de todos os que converterem a
religião em um meio para adquirir fortuna temporal!"
A voz de Jesus tomava então uma entonação vibrante e seus gestos
tornavam-se ameaçadores. Em nenhuma época de sua vida de apóstolo
encontrou tanta amargura em sua alma e tanta indignação em seu
espírito, ao revelar as vergonhas da Humanidade, armando-se contra ela
com as prerrogativas que lhe davam a sua missão e a ciência divina.
"Sois fracos e ferozes. À ignorância da juventude ajuntais a
perversidade do orgulhoso, do avaro, do ambicioso, do dissoluto, do
assassino.
"Combateis pela glória alheia! - Que é essa glória?
"Uma espantosa demência, um monstruoso assassinato. "Adorais
um Deus! - Quem é esse Deus? "Uma imagem formada por espíritos em
delírio, um ídolo freqüentemente furioso, sempre fácil de
tranqüilizá-lo, acessível a todas as queixas, disposto a todas as
concessões. Um ídolo adornado com vossos próprios vícios.
"Os
altares de vosso Deus estão inundados de sangue e vós lhe dedicais
até sacrifícios humanos.
"Ah! - Causai-me horror! - Empenho-me por adiantar o momento de
minha morte, sabendo bem que ela será dolorosa, pois somente depois
dela eu me verei livre de vosso vínculo, rota uma fraternidade que me
é odiosa, e entrarei na glória de meu Pai.
"Poreis em desnudez
meu corpo para alegrar vossos olhares, submetereis à sorte minhas
vestes para que possa dizer-se que nada do que é meu deixastes a meus
servos; meus servos desaparecerão e morrerei abandonado pelos homens,
pois que está dito: o Messias morrerá ignominiosamente; o Céu e a
Terra guardarão silêncio.
"Não penseis que eu temo a morte; mas
assusta-me vosso porvir.
"Não penseis que eu abrigo a intenção
de livrar-me de vossos ódios, mas compreendei e recordai isto: Eu
voltarei depois de minha morte. Os que me reconheçam serão perdoados.
Compete ao Filho de Deus levantar o pecador e abençoá-lo,
facilitar-lhe o arrependimento e proteger os fracos."
Irmãos meus, a palavra de Jesus torna-se sentenciosa e profética à
medida que ele se vai aproximando do termo de sua vida terrestre, ao
mesmo tempo que suas afirmações se vêem livres prontamente do temor
pelas perseguições e pelas preferências de seu espírito em favor dos
deserdados. Anunciando ele mesmo a ressurreição de seu espírito e
prometendo sua participação nos progressos da família humana, ditava
sua sentença de morte. Seus amigos, desde logo demasiado tímidos e
descoroçoados pela confusão dos espíritos, sentiram-se, sob todos os
pontos, impotentes diante desta terrível imputação.
"Declarou-se Deus. Todos ouviram. Tem que morrer."
Determinemos a confusão dos espíritos e façamos distinção entre
os partidários e os defensores de Jesus.
Os partidários de Jesus
amavam o homem e teriam querido salvá-lo do perigo inerente às
prerrogativas de Messias. Os defensores de Jesus deduziam a prova de sua
superioridade das demonstrações do apóstolo; mas esta superioridade
cada um a explicava a seu modo e a lógica era sacrificada com freqüência,
ante o espírito de partido e de disputas.
Uns ignoravam a doutrina que
havia proporcionado a Jesus suas mais formosas definições da grandeza
de Deus e o tomavam por sábio, cuja vida havia transcorrido no estudo
das leis orgânicas e das dependências destas leis. Admiravam o ardente
professor de moralidade tão pura, mas rechaçavam tudo quanto lhes
parecia sair do círculo dos descobrimentos permitidos à inteligência
do homem. O destino humano,
depois da morte corporal, era para eles um
mistério que ninguém podia penetrar. Atacando este mistério, eu me
convertia em derrogador, a seus olhos; sustentando minhas convicções,
volvia-me um fanático por um erro concebido no paroxismo da vaidade.
Outros conheciam as fontes de minha ciência, porém não reconheciam a
esta ciência o poder de estabelecer demonstrações tão absolutas e
classificavam de orgulhosa pretensão minhas alianças de espírito com
espíritos mais elevados.
Os primeiros tinham a franqueza de suas
opiniões, os últimos misturavam à consagração de um fato inegável
as reticências de espíritos acanhados e ciumentos. Os defensores reais
de Jesus eram ao mesmo tempo seus partidários mais instruídos. Já nos
referimos a José de Arimatéia, Nicodemus, Marcos e Pedro. Nos últimos
dias que permaneci em Betânia, Pedro e José receberam de mim
instruções definitivas a respeito do que tinham que fazer depois de
minha morte. Demonstrar, cada vez mais, minha mensagem divina a estes
dois depositários de minha última vontade, era minha constante
preocupação.
"Que jamais desmereçam no cumprimento de sua missão, dizia eu,
mas que estejam convencidos de minha ressurreição espiritual, e esta
doutrina, no seu princípio, fraca como eles, se consolidará. - Oh sim!
- O porvir terá a colheita de tudo o que eu ajuntei e pus em
evidência. O porvir verá generosos espíritos combater o que eu tenho
combatido e pôr em prática o que ensino, e eu me converterei em seu
apoio, como os que vieram na minha frente o fizeram para comigo, a fim
de dar perseverança à ação, a calma e a força no meio dos
vendavais.
"Oh, sim! Sairei vitorioso da morte e revelarei perante o mundo
as provas de minha imortalidade."
Meus discípulos de Galiléia (excetuando a Pedro) me pareciam
incapazes para seguir minhas prescrições. Sua inaptidão tornava-se
ainda maior pelos deploráveis ciúmes, e sempre me havia custado muito
trabalho uma aparência de união entre eles. João e o irmão
preocupavam-se mais que tudo, em procurar os meios de elevar-me ante a
posteridade e prediziam que eu ressuscitaria, corporalmente,
(3) aos três
dias depois de minha morte. Mateus e Tomé
me estimavam, me veneravam
com uma espécie de adoração; porém não acreditavam em minha lucidez
a respeito do que se relacionava com o porvir. Felipe dizia que era
impossível realizar alguma fundação com elementos conservadores tão
limitados. Judas e Simão, irmão de Pedro,
Alfeu e Lebeu, permaneciam
indecisos sobre muitos pontos da doutrina.
Judas (o Iscariotes) buscava mais que nunca,
poucos dias antes de nossa saída, algum testemunho de
afeto. Ai de mim!
Olvidei-o no meio de tantas preocupações. Meus amigos de Galiléia
eram superiores, em méritos espirituais, a todos os meus discípulos de
Galiléia.
A casa de Simão havia-se enchido, devido a mim, de consolos
e esperanças; porém aí, como nas outras partes, os espíritos
careciam de homogeneidade na fé. Todos os que encontrei nesta casa
foram-me fiéis e serviram-me com dedicação. Maria morreu pouco tempo
depois de mim. Maria e Simão encontraram forças nas manifestações
espirituais, que eu lhes havia prometido.
Irmãos meus, permaneçamos
compenetrados da graça divina, porém procuremos não ver nela um
desvio da Natureza. A demonstração dos destinos humanos pode ser feita
somente pelos delegados de Deus a espíritos preparados para receber
esta demonstração; e todos os espíritos terão que percorrer o
caminho que leva às honras da revelação, feito pelos delegados de Deus. A
idéia manifestada com a palavra milagre não existe em nossa pátria,
onde as leis do desenvolvimento e as da desorganização são
reconhecidas como invioláveis e onde a manutenção do equilíbrio
universal se define por meio de um estado permanente das propriedades de
cada elemento, as harmonias de cada atmosfera, dos princípios
conservadores e das causas mórbidas inerentes à matéria, das
afinidades e das repulsões próprias do espírito, dos caminhos abertos
à inteligência coletiva e às investigações individuais, para
conservar, preservar, reparar, curar e vencer a destruição, mediante a
conquista da espiritualidade pura.
A doutrina de Jesus explicava o fasto
da imaginação para descrever as alegrias da espiritualidade pura; mas
no ensinamento da adoração humana por meio da divindade e no
ensinamento dos deveres fraternos, a doutrina de Jesus, positiva em seus
princípios, desafiava os equívocos mediante a aplicação de seus
preceitos. Ela tirava das perfeições de Deus a causa motriz da
perfectibilidade do espírito humano. Reunia os atributos divinos para
fazer com eles um código de moral universal. Proclamava a igualdade,
explicando as origens e os destinos. Dizia que o amor das criaturas,
entre elas, é o único meio para atrair sobre as humanidades o amor do
Criador.
"Em vossa adoração a um Deus justo, dizia Jesus a seus
discípulos, sede alheios aos desejos contrários à justiça.
"Em
vossa adoração ao Autor de todas as cousas, rechaçai as profanações
e as crueldades.
"Em vossa adoração a Deus forte, poderoso,
imutável, aliviai vossa consciência, dilatai vossa alma, olvidai as
necessidades da vida corporal.
"Em vossa adoração a um Deus de
amor e de misericórdia, lançai-vos nos braços de um ardoroso amor
filial, de um amor grato, e perdoai aos que vos tenham ofendido.
"Reuni os fiéis em meu nome e repeti minhas palavras sem
tirar-lhes nem acrescentar-lhes nada.
"Ide à casa do pobre para
consolá-lo e abençoá-lo.
"Não vos intrometais nas cousas
temporais a não ser para reunir novamente o que tiver sido desunido e
para facilitar a concórdia entre os homens.
"Sede sóbrios e
discretos, porém não vos imponhais sacrifícios inúteis.
"Desprezai as honras do mundo e não sejais escravos de
preconceitos. Habitai com os inimigos de Deus para edificá-los com
vossa conduta e nunca maldigais de alguém.
"Tomai-me como exemplo
e segui-me, do contrário não sereis meus discípulos. Sou pobre,
permanecei pobres, sou perseguido, sofrei as perseguições, e espalhai
entre todos os homens a esperança, a paz, a luz do espírito."
Irmãos meus,
o amor de Deus converte a alma humana em criadora,
depois de havê-la subjugado sob as provas de um desenvolvimento
dolorosamente laborioso. A inteligência humana criadora é a
aproximação do espírito criado e do espírito criador, é a
perfectibilidade orgânica, o desenvolvimento das faculdades, tal como o
pensamento estático havia ousado sonhá-lo; é a quimera de um vasto
ideal convertida em uma poesia sincera da alma, dilatação devoradora
do espírito.
Oh, Deus meu! Quanta distância entre este pedestal
levantado por teu amor às gerações ascendentes e os abismos
formigando de insensatos mal-humorados, de inimigos desapiedados, de
heróis monstruosos. Quanta distância entre o esplendoroso vestíbulo
de tua morada de glórias eternas e estas trevas de espanto, onde teu
nome, pronunciado com hipócrita doçura, é acolhido pelas risadas
estúpidas de uma multidão que exala nuvens de pó e rios de sangue.
Dentro de pouco voltarei. Concluo aqui meu décimo quarto capítulo.
___________________
(1) - Apresenta-se novamente aqui a designação de religião
universal, ou, como eu sempre escrevo, Religião Laica Universal, livre
de todas as estreitezas de círculo, escola ou seita. Compraz-me fazer
ressaltar esta insistência do Mestre. - Nota do Sr. Rebaudi.
(2) - Refere-se sem dúvida a essas investigações destinadas somente
a satisfazer a vaidade ou filhas de uma estéril curiosidade. - Nota do
Sr. Rebaudi.
(3) - Na realidade, desde que se fala em ressurreição, não pode
entender-se senão a volta à vida material, posto que, não se falando
de morte espiritual, também não há motivo para falar de
ressurreição espiritual. O que deve compreender-se, no meu entender,
é que Jesus quis referir-se ao desaparecimento e reaparecimento de sua
personalidade eclipsada por um momento devido à desencarnação. Para
os homens Jesus tinha morrido e seu reaparecimento não podia ser
considerado senão como uma ressurreição pelos hebreus. Este é o
fato. - Nota do Sr. Rebaudi.
___________________________
FIM
DO CAPÍTULO 14