A última vez que Jesus voltou de Jerusalém a Betânia, manifestou a
intenção de não lutar mais, de não fugir mais, e de esgotar o
cálice da amargura para obedecer a seu Pai Celeste.
"Não me desvieis do objetivo, disse, porém caminhemos juntos.
Rodeai-me de carinho e de honras para ocultar a meus olhos a ingratidão
do povo e para facilitar o remorso de meus acusadores.
"Todos
dirão: Pois que o amam, o seguem, tributam-lhe honras, há de ser
porque vêem sempre nele o Messias, filho de Deus.
"Não vos
aflijais pois demasiado por nossa separação carnal, e cumpri minha lei
como se ainda me encontrasse entre vós. Minha lei é uma lei de
amor; o
espírito a ditará em todo tempo. "Paz aos homens de boa vontade!
Eis o que entendo com estas palavras.
"O homem vê-se continuamente
agitado por desejos e arrependimentos. Sua alma jamais se vê
satisfeita, seu espírito é ávido de bens efêmeros, sua vida passa
entre a ignorância e a ambição.
"Mas se o homem se inicia
mediante a vontade na emanação divina, sua alma torna-se livre e
feliz, seu espírito percorre caminhos até então desconhecidos, sua
vida aspira somente a uma posse, a da ciência.
"Sim. - Paz aos
homens de boa vontade! - Eles são os obreiros de Deus, os preparadores
de seu reino na Terra."
A festa da Páscoa devia ter lugar, nesse ano, nos últimos dias de
março e primeiro de abril (exprimo-me de modo a ser entendido). Quis, como era costume, ir a Jerusalém; porém, não
ignorava que a ordem de prender-me seria expedida e que o decreto de
morte já tinha sido pronunciado.
Nicodemus, José de Arimatéia e seus
amigos, em número de quatorze, haviam-se abstido de qualquer
deliberação, não querendo comprometer os meios de servirem-me nos
últimos momentos, de salvarem-me talvez. Depois de terem-se esforçado
em fazer mudar as disposições do povo a meu respeito, eles recorreram
a Pôncio Pilatos, que lhes deu esperanças.
Os dezesseis foram
substituídos e ao tribunal reuniram-se dez membros suplentes. Todos
condenaram a Jesus como impostor, sedutor, aliado do espírito das
trevas. O defensor escolhido pelo tribunal para fazer valer as causas
atenuantes de meu delito, havia-se alongado em uma difusa dissertação
sobre a monomania religiosa e tinha chegado à conclusão, de acordo com
a opinião da gente de Nazareth, que eu não era mais que um extático
digno de lástima e desprezo.
"É necessário que este homem morra,
exclamou o Sumo-Sacerdote Anás, porque é culpado de lesa-majestade divina, com todo o
conhecimento de um doutrinário. - Por que motivos nos vêm falar de
monomania, de demência, quando tudo demonstra uma rara perspicácia,
uma ambição devoradora, um caráter dos mais perigosos? - Ainda que a
demência estivesse provada, é preferível a morte de um homem
inconsciente à queda do Sacerdócio e à ruína de uma nação."
No domingo, 27 de março, teve lugar nossa partida de Betânia. O
trajeto foi o mais animado, e as honras tributadas a minha pessoa
acariciaram as ilusões de meus discípulos. A pouca distância de
Betânia encontramos alguns estrangeiros, cujo número foi aumentando à
medida que nos íamos aproximando da cidade. Cedi aos seus desejos de os
deixar seguir-nos e entramos em Jerusalém como triunfadores. Não é
verdade que eu estivesse montado em um jumento, porém é certo que me
foi proposto, recusando eu o oferecimento.
Muitos se apinhavam a meu redor. Ramos com folhas e flores caíam a meus pés,
e o povo de
Jerusalém unia-se ao povo nômade para cumular-me de entusiastas
demonstrações. O povo é sempre
imitador e instrumento. Reproduz-se com seus instintos atávicos e
obedece a interesses que não são os seus. Por momentos escravo
embrutecido ou déspota insensato, o povo conhecerá a verdadeira força
somente mediante os benefícios da educação moral. A educação moral
encadeia os instintos e desenvolve a razão. Quando ela se encontre na
ordem do dia, as classes dirigentes terão compreendido o verdadeiro
progresso e a Terra se elevará para Deus. Uma das primeiras pessoas que
reconheci no meio da multidão, que vinha ao nosso encontro dos
arredores da cidade, foi meu irmão Eleazar. Tive que supor que meus
irmãos mais velhos estavam juntos e procuravam combater a má
influência produzida por meus outros irmãos. Este dia converteu-se
depois para mim numa responsabilidade gravíssima. O povo que se havia
demonstrado entusiasmado por minhas últimas honras, acusou-me depois,
perante Pôncio Pilatos, de haver levado minhas pretensões humanas tão
longe, até fazer que me chamassem rei. A sabedoria e boa vontade do
juiz romano levaram a cousa de brincadeira.
"Provavelmente, disse Pôncio, Jesus se julga o primeiro dos
hebreus e a palavra Rei exprime sua idéia. Seja pois Rei dos hebreus! -
Mas este rei não pode, sob nenhum pretexto, causar prejuízo à
segurança do Império."
Na tarde de
domingo
(27 de março) combinamos passar a noite em
Jerusalém. No dia seguinte me vi assediado para que deixasse aquelas
paragens para sempre; permaneci imperturbável e
essa espécie de
delírio que precipitava minhas palavras, passou mais tarde como
profecia. Prometi a Marcos chamá-lo o mais depressa possível ao reino
de meu Pai, e às mulheres que se ajoelhavam diante de mim, disse-lhes:
"Vós tereis a coragem de acompanhar-me até à morte e Deus
colocará sobre vossas frontes, como sobre a minha, a coroa do
martírio". Meus discípulos de Galiléia juravam todos que me
rodeariam e me defenderiam até derramar a última gota de seu sangue.
Acolhi estas manifestações com um melancólico sorriso e nada respondi. Depois, dirigindo-me a minha mãe, disse-lhe:
"Tu tens entre os companheiros de teu filho, minha mãe, um
filho e um irmão que te recordarão o ausente e viverás para que não
seja negada minha ressurreição como
espírito. Da resignação de meus
discípulos, da vossa principalmente, depende a conservação de minha
doutrina no presente, do mesmo modo que o porvir desta doutrina depende
dos sucessores de meus discípulos".
Consenti em evitar meus inimigos ainda mais uma vez e
fomos
hospedar-nos em uma casa colonial, onde já em outras ocasiões
havíamos encontrado boa acolhida. Gethsemani, situada em uma
paragem
elevada de onde se avistava o mar
Morto, o Jordão, as planícies e as
montanhas de Galiléia, havia de oferecer-nos um abrigo tranqüilo, ao
menos por algum tempo. O povo nos tinha afeição, e os
sacerdotes, que
temiam mais que tudo as manifestações populares, hostis a seu poderio,
ter-se-iam abstido, seguramente, de proporcionar-lhes um pretexto para
uma agressão brutal. Procuraram um meio para apoderarem-se de minha
pessoa sem testemunhas e sem ruído e
a vergonhosa defecção de Judas
foi obra deles. De meus discípulos de Galiléia,
Judas foi o único que
não me acompanhou a Getsemani, na manhã de segunda-feira.
Alcançou-nos à tarde e sua atitude chamou a atenção de Pedro, que me
disse:
"Que tem, pois, Judas? Olhai-o quão preocupado está".
Aproximei-me dele e perguntei-lhe por que nos havia deixado no momento
de nossa partida de Jerusalém.
"Tinha ainda que visitar algumas
pessoas, disse-me, e por outra
parte eu tinha desejos de me informar das últimas disposições tomadas
a nosso respeito. Elas são de tal natureza que nos tiram toda a
esperança de poder fugir à vingança dos nossos inimigos."
"Tu não deves estar triste por uma solução que eu tenho
procurado, disse eu. Mostra-te animoso no momento do perigo e guarda a lembrança do Mestre quando já não me encontre
convosco."
Estendi a Judas a
mão, que ele apertou
fracamente; seu olhar
esquivou-se de mim. Entendi... Indeciso a princípio, tomei depois o
partido de dissimular para com ele e de o trazer sob uma pressão a
todos os instantes. Entretinha-o, estimulava-o a expansões, para
observar melhor suas reticências e suas perplexidades. Na
quarta-feira,
Judas propôs visitarmos as plantações de oliveiras que cobriam o
flanco da montanha de Getsemani pelo lado de Jerusalém e deu como
pretexto de sua lembrança as modificações por que devia ter passado
esta localidade. Propus que o passeio se efetuasse no dia seguinte . . .
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O
lava-pés era uma das instituições de João;
uma demonstração da
igualdade humana. O senhor é o irmão de seu
servo. A posição social
deixa de existir quando se trata de adorar a Deus. A força moral
determina a elevação e o homem demonstra-se muito maior com o
cumprimento de seus deveres, que com esplêndidas demonstrações de
suas faculdades diretivas. Dei provas do meu respeito pelo apóstolo,
adotando muitas de suas práticas religiosas, porém conservei somente
as que me pertenciam, pela diferença que estabeleci entre elas. O lava-pés era celebrado por mim e meus discípulos, todos os anos,
somente na véspera do grande sábado de Páscoa.
A Ceia, a grande
refeição da noite, precedia a este ato. Nossa refeição da noite
tinha uma espécie de solenidade, devido à exclusão de toda outra
pessoa, que sempre mantivemos durante nossa vida nômade, quando nos
encontrávamos todos reunidos. Meus primeiros doze discípulos e
meu tio
Tiago manifestavam-se felizes pela resolução tomada por mim de não
admitir a nenhum estranho em nossa refeição noturna, e eles
aproveitavam esses instantes, que alongavam a seu gosto, para
identificarem-se melhor com as palavras e as intenções do Mestre.
Nesses momentos, precisamente, disseram-se e repetiram muitas
recomendações. Muitas promessas, e também muitas prédicas, baseadas no conhecimento profundo da natureza humana.
A
sexta-feira anual do lava-pés parecia-me muito longe. Sentia que um
perigo iminente me ameaçava, e queria dar a meus últimos dias os
caracteres de uma fatal precisão dos acontecimentos. Por isso, pedi a
meus discípulos que procedessem nessa mesma noite ao lava-pés (antecipado
para quinta-feira à noite, então)
. A
surpresa de todos afligiu-me, porque deixava-me entrever seus
pressentimentos e Judas me inspirou ainda mais piedade que desprezo
nesses momentos solenes, em que manifestei a quase certeza de ser, muito
breve, aprisionado. O afeto de meus discípulos de Galiléia era
sincero; mas duvidei, com razão, de sua firmeza.
Nessa reunião da
tarde, que foi a última,
eu lhes conferi o título de
apóstolos,
entrando em particularidades referentes ao que meu espírito entendia
dos trabalhos e sacrifícios que deviam levar- se até o fim, do que
minha alma encerrava de solicitude e amor, prometendo-lhes o poder de
governar o mundo.
"Fazei de minhas instruções a regra de vossa conduta e
chamai-me quando tenhais que discutir com os homens de má-fé.
"Ou
seja que permaneçais unidos, ou seja que vos separeis pela boa causa,
eu me encontrarei no meio de vós e com cada um de vós.
"A fé
não perecerá nunca, porém se tornará obscura pela falsa direção
dada a meus ensinamentos.
"Aos que sustentarem a verdade, eu lhes
retribuirei com liberalidade meus consolos e esperanças; porém, ai
daquele que se distancie de mim! A voz do espírito retumbará no
espírito e os acontecimentos se encadearão de tal maneira, que a
verdade se restabelecerá e os impostores serão confundidos e os
fervorosos serão recompensados e castigados os tíbios.
"A
malícia e a perversidade do mundo vos preparam maus dias. Conservai
vossa fé pura de todo o fingimento e não ponhais limites à vossa
caridade. A força vem de Deus e eu vos transmitirei a força.
"Pedi os tesouros de Deus e desprezai as riquezas da Terra. Quem
pretenda elevar-se entre os homens, será humilhado diante de Deus.
"Vós sois meus apóstolos; pregai a palavra de Deus e anunciai
seu reino por toda a Terra.
"Vós sois meus discípulos queridos;
ajudai os pobres, eles são meus membros; facilitai o arrependimento,
prometei o perdão em nome de Deus, nosso Pai.
"Tudo o que
perdoardes, será perdoado e a graça vos acompanhará na paz e nos
perigos.
"Não devolvais jamais mal por mal, mas forçai a vossos
inimigos que vos respeitem. Comprovai vossa fé mais com obras que com
discursos, e no extremo infortúnio recordai minhas promessas e meu
martírio.
"Estas promessas as cumprirei se tiverdes sido fortes e
tiverdes compreendido e praticado o que ordeno e o que eu mesmo tenho
praticado.
"Uma vida tranqüila não é uma vida de apóstolo e a
regularidade da conduta não constitui a virtude de um discípulo. São
necessárias ao apóstolo forças e coragem para afrontar o escárnio, o
desprezo, a perseguição, a escravidão, a morte; e o heroísmo deve
caracterizar os discípulos de Jesus.
"O apóstolo demonstrará
Deus e sofrerá pela verdade.
"O discípulo abandonará os bens do
mundo e as honras do mundo. Abandonará o pai, a mãe, a mulher, os
filhos, antes que renegar minha doutrina, já seja com os atos, já seja
com as palavras, já seja com a abstenção e com o silêncio.
"Vós sois meus apóstolos e meus discípulos; eu terei que contar
convosco e não obstante... eu sei desde já que muitos de vós me
atraiçoarão."
Encontrava-me à mesa, rodeado pelos
doze; meu tio Tiago formava o
décimo terceiro e estava para partir o pão e começarmos a refeição.
Meus apóstolos levantaram-se bruscamente:
"Senhor! Senhor! - prorromperam. - Por que nos causas esta
tortura? - Por que chamar-nos traidores, depois de haver-nos confiado o
êxito de tua obra?"
"Os que me atraiçoarem por fraqueza, respondi eu, se
arrependerão; somente o que me tenha atraiçoado por
vingança,
sucumbirá sob o peso de seu delito".
Judas mantinha os olhos
baixos, porém ninguém lhe prestou atenção
além de mim. Recomendei a meus apóstolos que guardassem a lembrança
dessa noite e ofereci-lhes o pão; Judas, que se encontrava à minha
direita, serviu-se em primeiro
lugar. João, colocado à minha
esquerda,
como sempre, inclinou-se para mim e
disse: "Em qual de nós
pensaste tu, agora, ao falar de traição?"
Respondi a João:
"O que me atraiçoará ocupa neste momento um lugar de honra,
porém, outros também me atraiçoarão mais tarde e muitos me
abandonarão covardemente ao longo do caminho do sacrifício."
Continuei servindo os meus apóstolos e insisti para que me deixassem
nessa tarefa. Pedro, à minha frente, estava distraído; não comia nem
bebia; dirigi-lhe estas palavras:
"Tu já não és o pescador de peixes, amigo meu, estás aqui
convertido em pescador de homens. Tuas redes serão agora os argumentos
e recolherás em tua barca aos pobres náufragos; teus companheiros te
ajudarão na árdua luta, que haverá que sustentar contra os elementos;
vós outros não imitareis a esses espíritos arduamente orgulhosos e
céticos, que se preocuparão das causas da queda e da enfermidade,
antes de socorrer ao ferido e de aliviar ao enfermo.
"Feliz daquele
que compreenda estas palavras e que as ponha em prática!
"Felizes
os fortes! Eles submeterão suas paixões à razão e verão outros
tantos irmãos em todos os homens. Conduzir para Deus os insensatos que
o desconhecem, os ímpios que o ultrajam e livrar a Terra do fermento da
dissolução, é cooperar poderosamente para a concórdia universal.
"Convertei-vos em pescadores de homens vós todos, amigos meus,
e reuni o maior número de espíritos que possais.
"Para ser hábil
no ofício de pescador de homens é necessário ter o dom da doçura e
da firmeza, o direito de falar e de se fazer ouvir.
"Tereis o
direito de falar quando vossa consciência se encontre tranqüila, e
sereis ouvidos se vós mesmos estiverdes convencidos da verdade que
ensinais.
"A elevada posição de um servo de Deus não ressalta no
mundo porque a força e a luz que se encontram nele, não as emprega
jamais para proporcionar-se nenhum poderio. As honras e as riquezas não
poderão portanto ser o privilégio de meus apóstolos e, se eu lhes
asseguro o império do mundo, é com a condição de que sejam ternos de
coração, firmes de espírito e que conservem o direito de falar e o
dom de serem escutados.
"Os preguiçosos se converterão fatalmente
em hipócritas. Não havendo tido a coragem de me seguirem deixarão que
se espalhem dúvidas a respeito de minha pessoa; e o desejo de alegrias
mundanas, a sede de honras, o amor das riquezas, os arrastarão às
prevaricações, à vergonha de parecerem discípulos meus, entretanto
me negarão também com ações ocultas.
"Porque haverá
preguiçosos e hipócritas, Jesus se manifestará novamente para separar
o trigo do joio.
"O que não é por mim é contra mim. Todo o
equívoco é uma mentira; a verdade sou eu.
"Nada temais, vos
ampararei e vos auxiliarei, e meu espírito manterá o lugar que ocupam
agora meu corpo e meu espírito no meio de vós.
"Eis a hora cuja
aproximação me enche de angústia, não por mim, senão por vós.
Nunca, como agora, vos hei amado. Honrai-me quando não estiver já
entre vós, amando-vos uns aos outros e perdoando aos que vos tenham
ofendido.
"Permanecei fiéis à minha voz e adorai ao Senhor nosso
Pai, predicando em todas as partes a paz e o amor.
"Não tomarei
mais deste suco de uva convosco; mas quando vos reunirdes em minha memória, sentireis minha presença na
alegria que se infiltrará em vossas almas, na certeza de vossos
espíritos sobre todas as cousas.
"Penetrai minhas palavras na
atividade do apostolado do mesmo modo que no silêncio de vosso
recolhimento, e o que tiverdes de pedir para o culto de Deus vô-lo
recordarei. Mas não enfraqueçais vossos conhecimentos das cousas
espirituais, misturando-lhes cousas da Terra. Nossa aliança é a este
preço, quer dizer, que deveis desprezar o que eu tenho desprezado e
honrar o que eu tenho honrado.
"Os discípulos não são mais que o
mestre, ensinai pois minhas doutrinas sem tirar-lhes nem
acrescentar-lhes nada e refutai as dúvidas e os erros de maneira a
convencer aos incrédulos a respeito de vossa ciência. Esta ciência
não vos abandonará; o espírito beberá no espírito, e, até o fim
dos séculos, a graça resplandecerá para os homens de boa vontade.
"Meus queridos discípulos: amanhã talvez nos separaremos. Amai-me
como vos tenho amado e confundi a todos os homens no vosso amor, na
minha lembrança. Dou-vos o mundo para conquistar e minha luz vos
guiará. Prometo-vos a glória de Deus.
"Nomeio-vos meus sucessores
e vos abençôo.
"Que a paz seja convosco e com vosso espírito.
"Vinde dar-me o beijo da despedida".
Meus apóstolos precipitaram-se sobre mim. Eu permaneci de pé e meu
semblante refletia uma intensa emoção. Judas beijou- me como
todos.
Era meia-noite quando enxugamos os pés de meus apóstolos. Digo
enxugamos porque meu tio Tiago, cuja ternura por mim se associava a um
profundo sentimento de devoção prática, me ajudava todas as vezes que
devia manifestar com uma tarefa pessoal, o culto de uma idéia
religiosa. Nesta ocasião suplicou-me que lhe cedesse a maior parte do
sacerdócio; é a palavra que empregou.
Eu limitei-me a servir a
Judas,
Pedro e Filipe, dando como motivo de minha preferência
a idade mais
avançada desses três apóstolos.
Todos os meus esforços tinham que ser em vão. Judas
não quis acreditar em meu carinho, nem compreender que eu o havia
adivinhado, nem admitir que me sentia pesaroso por minhas anteriores
predileções, nem aplacar o orgulho para escutar a consciência.
Na
quinta-feira pela manhã me senti algo consolado da ingratidão, devido
a uma prova de amor.
Simão de Betânia e seu parente Eleazar vieram
visitar-me. Minha mãe e as demais mulheres mandaram-me suplicar que as
recebesse em meu retiro e meus três irmãos mais velhos
desejavam
reunir-se a mim no meio da sorte adversa, Marta encontrava-se entretanto
em Betânia, devido à sua fraqueza, encontrando-se cada vez mais
enfermiça, na casa da irmã, a quem havia ocultado minha fuga de
Jerusalém. Confiei a Simão o encargo doloroso de preparar meus amigos
para o fatal desenlace e volvi sobre o tema de que o dia estava
próximo, que minhas horas estavam contadas e que a reunião de nossos
espíritos teria lugar na casa de meu pai. Estas palavras provocaram a
terna emoção de Simão, tive-o abraçado por largo tempo e minhas
lágrimas se confundiram com as suas. Alguns instantes depois Simão e
Eleazar empreendiam o caminho de regresso a Jerusalém.
Eu havia negado
a todos a permissão para me acompanharem a Getsemani,
porque queria
consagrar o tempo que me ficava livre, às expansões de minha alma
diante dos que escolhi para meus sucessores. Existia ainda outro motivo
para esta disposição de meus últimos dias; a presença de minha mãe
e de minhas santas companheiras teria constituído um perigo real nos
momentos em que o apóstolo, o fundador, o homem, devia encontrar suas
forças para preencher a missão de Deus. Jamais minha confiança e meu
amor se haviam traduzido em tão grande abandono e ardor, jamais a
demonstração do porvir se manifestou tão clara de entre o
encadeamento de minhas visões espirituais.
"Vós sois minha carne, sois meu sangue, dizia eu, meu espírito
está em vós e todas as potências da Terra não conseguirão
predominar sobre o vosso poder, que será universal.
"Se não recordais todas as minhas palavras, conservai seu
espírito, escolhei entre minha pessoa e o mundo, para não servir a
dois senhores.
"Ainda que vos separeis de mim por algum tempo, mais
ou menos longo, minha doutrina não deixaria, por isso, de ser a luz do
mundo, porque outros virão depois de vós, os quais reporão o que vós
tiverdes tirado e escutarão minha voz. Eu lhes direi tudo o que vos
disse e Deus terá seu templo em toda a Terra.
"O mundo está
povoado de hipócritas. Eles fazem o contrário do que se manda; outros
honram publicamente o que renegam no íntimo de sua consciência; meus
discípulos terão que proclamar a verdade e seguir a moral que ela
encerra; a estes eu os reconhecerei. "O mundo está povoado de
fanáticos, de supersticiosos e de incrédulos; meus discípulos terão
que instruir os ignorantes e convencer os incrédulos, com exemplos de
virtude e com a referência de nossa aliança, antes e depois da morte
corporal.
"Favorecerei somente àqueles, cujo espírito seguir meu
caminho e que compartilharem, do fundo de sua alma, de todos os
infortúnios.
"Concedo-vos meu poder; porém, se vos tornásseis
infiéis, eu vô-lo retiraria, e minha luz seria retardada no mundo, e o
nome de Deus seria blasfemado, e a desolação, a confusão, o delito e
a impiedade reinariam em todos os lugares.
"Sede meus substitutos,
e não somente meus sucessores, e dizei:
Somos sua carne, seu sangue,
seu espírito: O que fazemos em sua memória, o Senhor o ordena e o
cumpre em nós."
Irmãos meus,
o sentido destas palavras:
Vós sois minha carne, meu
sangue, meu espírito,
o sentido destas palavras,
repetidas muitas vezes
durante meus últimos dias, foi
tergiversado, com o fim de erigir um
dogma ímpio e ao mesmo tempo falho de razão.
"Fazei todas as
cousas em meu nome, obrai como se me encontrasse visivelmente entre
vós",
são formas que eu
empregava com freqüência, para dar à presença de meu espírito a
autoridade da lembrança de minha vontade imutável; para incrustar no
pensamento de meus apóstolos o mais irresistível de meus meios de
ação, sobre suas práticas futuras. É justamente ao império exercido
por minha promessa renovada, de encontrar-me sempre entre eles, que se
deve atribuir a docilidade fervorosa de meus representantes imediatos.
O
passeio projetado devia ter lugar ao cair do dia. Meus apóstolos
pareciam tê-lo esquecido e o próprio Judas permanecia sob o encanto
das melodias da alma.
Eu evocava a realidade do passado e os fantasmas
do porvir. Todos participavam por igual de meus transportes de ternura,
e meus olhares, meus sorrisos, os enchiam de alegria.
Eu tinha a certeza
de que se ocultava uma surpresa sob as aparências de uma descuidada
curiosidade, quando lembrei a meus discípulos a hora favorável para
que nossa excursão não fosse turbada por importunos, nem ameaçada por
uma completa escuridão ao regressarmos.
Saímos,
uns alegres com a
idéia de que meus pressentimentos do dia anterior não fossem
confirmados, os outros silenciosos, quase tristes.
Manifestei a Judas
meu desejo de percorrer com ele o caminho até o jardim de Getsemani e
apoiei-me em seu braço. Falamos de cousas inteiramente secundárias,
durante quase quarenta minutos de caminhada, depois sentei-me à sombra
de uma figueira e meus apóstolos tomaram assento sobre diversos
montões de pedra. Judas afastou-se de
mim; eu havia previsto isto.
Dirigia ao redor olhares distraídos para os espessos bosquezinhos de
oliveiras, cuja extensão e espessura impedia a vista por todos os
lados.
Levantei-me depois de alguns instantes de
descanso, chamando
Judas meu companheiro de jornada. Foi chamado
inutilmente. Então
pronunciei palavras de acusação que não podiam ser alteradas por
nenhuma dúvida, dada a sua clareza.
"Aquele que vós chamais está aqui perto, ele está para
chegar. Quando o vejais, a vítima será entregue ao verdugo."
Os
gritos, as imprecações de meus apóstolos ouviram-se ao mesmo
tempo que chegava até nós o ruído do passo pesado de muitos
homens.
Judas não apareceu; tinha-lhe faltado a audácia do delito no último
momento. Os soldados, com divisas romanas,
eram em número de oito; dois
familiares do Santo Ofício os acompanhavam;
estes últimos apontaram-me
à tropa armada e um soldado deitou-me as mãos. Pedro agrediu este
homem; eu me apressei em repreender a meu apóstolo com estas palavras:
"Acalma-te, amigo meu, a resistência é inútil. Sem curvar a
cabeça como culpados, convém saber sofrer a lei humana com
resignação".
João enlaçou-me com os
braços, meu tio Tiago implorava a Deus, de
joelhos, e meu irmão Tiago deitou a correr em direção a
Jerusalém. Todos
os outros pareciam presa do terror. Mateus, Tomé, Alfeu, Tiago, o
irmão de João, acompanharam-me até à casa do Sumo-Sacerdote
Caifás; Lebeu, Filipe, Judo, Simão, irmão de
Pedro, voltaram a Getsemani. Depois de minha morte foram juntar-se com os que estavam
escondidos em Jerusalém. Fizeram sentar meus discípulos em um banco do
pátio e a mim introduziram-me em uma espaçosa sala, onde se
encontravam reunidos Caifás, o Sumo-Sacerdote Anás, genro de Caifás,
e uma delegação do Sinedrim composta de vinte membros. O Sumo-Sacerdote procedeu imediatamente ao meu interrogatório:
"Jesus de Nazareth, és acusado de sedução, de profanação,
de malefícios e como tal se vos condena à pena de morte. "Para
obedecer à lei que te castiga, devemos ouvir tua defesa pessoal e
facilitar a tua confissão ante a exposição das acusações que pesam
sobre ti. Aqui está o resultado dos depoimentos que recolhemos. "O
nazareno Jesus associou-se principalmente a fatores de desordem, que
tinham o propósito provado de sublevar o povo contra as leis do Estado.
"Além disso o nazareno Jesus pronunciou-se publicamente contra o
respeito devido aos poderes civis.
Disse-se reformador da lei mosaica, mediador entre Deus e os homens,
filho de Deus, afinal. "Apoiado neste título monstruoso, por sua
impiedade, o nazareno Jesus converteu-se em ídolo de um povo ignorante
ao qual anunciava o pretendido reino de Deus, conseguindo cativá-lo
cada vez mais, com a aparência sobrenatural de seus atos e de suas
predições. "Jesus de Nazareth, ousas sustentar que és filho de
Deus? - Interrogo-te, responde.
"Esta frase era provocada por meu silêncio; meu silêncio continuou.
"E teus milagres, demonstra-os, pois, acrescentou com dureza o
Sumo-Sacerdote. Dize o que possas para atenuar teus delitos e demonstrar
a ciência de que pretendes ser possuidor", continuou Anás.
"Se produzires um milagre, continuou Caifás, acreditaremos em
ti e proclamaremos tua filiação divina."
Um desprezível sorriso acompanhou estas palavras. Levantei a cabeça
e encarei meus juízes.
Muitos gritaram: Provoca-nos, não liga
importância à justiça de Deus, merece o suplício destinado aos
maiores delinqüentes, aos mais endurecidos malfeitores!
Ordenaram aos
soldados que me levassem. De um quarto baixo, que dava para o pátio, me
foi fácil compreender os propósitos que abrigavam meus apóstolos e os
subalternos da casa do Sumo-Sacerdote. Os soldados da guarda foram jogar
e parecia haverem-me esquecido.
"Acompanhais o condenado?" - Perguntou alguém a
Pedro.
"Não conheço esse homem",
respondeu meu apóstolo. João
e seu irmão pareciam estar em boas relações com uma pessoa que os
aconselhou a sair para não se comprometerem. Eles
seguiram o conselho.
Meu tio Tiago renovou diante de todos o
juramento de antes morrer que renegar sua aliança comigo. Arrastados
por este ato de coragem e lealdade, Marcos, Alfeu e Tomé assentiram que
eram meus discípulos e acrescentaram que não me abandonariam. Pedro e
os dois filhos de Salomé eram os que mais haviam demonstrado,
exteriormente, sua ternura por mim, dando à amizade as delicadas formas
da feliz expressão do semblante e das doces inflexões da voz. Fazendo
da submissão o melhor atrativo para a ocupação de seu tempo, tive que
vencer muitas dificuldades, para que a excessiva ingenuidade de Pedro
desse lugar à independência do pensamento, para que a fogosa
imaginação dos dois irmãos se aproximasse ao entusiasmo das naturezas
generosas, para guiá-los, até confundir comigo sua vontade e suas
esperanças. Esta fraqueza de última hora ultrapassou minhas
previsões.
As diversões dos soldados abafaram os ruídos exteriores, e
depois de assistir a cenas triviais de jogadores ébrios, fizeram-me o
alvo dos gracejos grosseiros desses homens estúpidos e ferozes.
Quando
amanheceu, muitos dormiam, outros estavam novamente bebendo e queriam
obrigar-me a que bebesse com eles.
Ataram-me juntas as mãos para
conduzirem-me à presença do procurador romano.
A arquitetura do
pretório era de estilo grego, do qual mostrava suas colunas carregadas
de ornatos; blocos de pedra simulavam balcões em todas as janelas,
entablamentos em todas as plataformas que ligavam, em todos os pisos,
dois corpos paralelos de construção.
O pretório ocupava um espaço
bastante extenso.
Uma sala aberta para o público, que oferecia a
facilidade de reunião e de palestrar, enquanto não chegava o momento
de comparecer, por si ou por intermédio de outros, para algum assunto
contencioso ou delituoso.
As sentenças civis eram, prévia apelação,
confirmadas ou reformadas pela alta magistratura civil, que tinha seu
assento no pretório e que se pronunciava, resolvendo, em última
instância.
Os castigos corporais e a pena de
morte, qualquer que fosse
a religião do condenado e a autoridade que houvesse imposto o castigo,
deviam receber a confirmação do delegado da soberania imperial romana, e este delegado era então Pôncio
Pilatos.
Pôncio tinha quarenta e dois
anos. Era um homem de reto
sentir, de caráter débil, terno e afável; porém ambicioso e sempre
pronto a sacrificar suas convicções para conservar o lugar que se
havia tornado de difícil desempenho, devido às dissidências que
diariamente se suscitavam entre os interesses opostos de um povo misto e
em luta com as exigências do partido hebreu. Pôncio detestava os
hebreus; porém não queria colocar-se muito abertamente em conflito com
eles, porque havia sido já apontado por antigas comunicações partidas
do ex-Sumo-Sacerdote Anás, como um inimigo sistemático das formas
religiosas e das disputas teológicas, questões, diziam as
comunicações, que não pertenciam ao procurador.
Apenas Pôncio me
viu, passou a mão pela fronte como para desfazer um pensamento, cuja
lembrança o fatigasse. Em seguida dirigiu-me as perguntas do costume
às quais respondi singelamente e sem excitação.
"Que delito cometeu este homem?" - Perguntou Pôncio,
dirigindo-se a um personagem cuja missão parecia ser a de acusar- me e
a de estipular a natureza de minha condenação.
"Jesus de Nazareth, respondeu o interpelado, é um
revolucionário, um renegado, um fabricante de milagres. Comprometeu a
ordem pública e atribuiu-se o poder divino."
"O subornador, o impostor foi julgado por direito sagrado,
porém o demonstrador das liberdades humanas, que está por cima das
potências humanas, o devastador das leis sociais, o predicador da
igualdade, o desmoralizador das classes pobres, encontra-se sob juízo
perante o representante do imperador Tibério. "Jesus, o filho de
Deus, será lapidado como ímpio, ou Jesus de Nazareth, culpado perante
Deus e perante o imperador, sofrerá melhor o suplício da cruz? - Nós
apelaremos para o povo se for necessário."
Pôncio ficou estupefato ante tanta audácia. Desta maneira
nem mesmo sua opinião se pedia, antes de apelar para o povo. Este
povo acolhia, gritando desaforadamente, as palavras que o instituíam
juiz supremo, palavras que haviam sido pronunciadas ao ar livre, sobre
uma das plataformas de que falamos.
"Que se crucifique!" -
Este grito foi imediatamente
repetido de todos os lados.
"Intitulou-se Deus e Rei; fez alarde de destruir o templo e
reedificá-lo em três dias!"
Pôncio respondeu que o título de rei parecia-lhe um termo de
elevação somente entre os hebreus; este modo de iludir a questão do
cargo político que se me reprochava, levantou contra mim as mais
formidáveis ameaças, os mais amargos sarcasmos.
"Pois bem, se é nosso rei, ponhamos-lhe uma coroa, demos-lhe um
cetro e saudemo-lo ao mesmo tempo, Rei dos hebreus e filho de
Deus."
"Diz-nos pois, filho de Deus, seria pelo menos necessário
esconder tua mãe, teus irmãos e irmãs. Ah! Já te daremos reinado,
até tua entrada no reino de teu Pai, duplo Rei, duplo impostor!"
Pôncio estava desesperado pela inutilidade de seus
esforços. De
repente deu ordem para que me desatassem as mãos e anunciou que queria
interrogar-me a sós.
Entrei, precedido por Pôncio, em uma sala
mobiliada com severidade, cujas saídas estavam todas fechadas. A porta
foi fechada pelo lado de dentro pelo procurador, que me ordenou
amavelmente que me sentasse, declarando-me que ali não estavam mais que
dois homens, dos quais um perguntava ao outro os motivos que o induziram
a buscar a morte, atacando a própria essência da lei mosaica e a
persistir no propósito de morrer, pois que havia desprezado as
possibilidades de fugir de seus inimigos.
Expliquei a Pôncio minhas
inspirações de criança, meus estudos de homem, minhas alianças,
minhas esperanças de espírito na luz infinita; fiz-lhe, a grandes traços, um extrato de minha
doutrina, das relações entre os mundos e os espíritos, e apresentei a
morte ignominiosa, que me esperava, como o glorioso coroamento de minhas
honras como Messias.
"E se eu conseguir salvar-vos?" -
interrompeu Pôncio.
"Não o intentes, respondi-lhe eu, tu mesmo te
verias arrastado pelo furacão popular... escuta..."
Pôncio sorriu desprezivelmente. "Consente em viver retirado,
disse, ganharei tempo e empregarei a força."
"Por outra parte, acrescentou Pôncio, tive um sonho a noite
passada a teu respeito e sinto que uma pesada responsabilidade me
pertence no presente e para o porvir."
"Esses sacerdotes que querem a tua perdição me desprezarão
por haver tido medo deles; este povo se arrependerá e a posteridade me
acusará, quando menos, de fraqueza."
"A posteridade, exclamei, saberá que tu me ofereceste a vida e
que eu quis morrer."
"Para mim a morte é uma auréola; para mim a vida seria uma
deserção, uma covardia, uma queda irreparável."
Levantei-me indicando assim eu mesmo o fim da entrevista, e
acrescentei:
"Da casa de meu pai, na qual estou para entrar, te abençoarei,
porque compreendeste a verdade e a defendeste com coragem."
Voltamos ao lugar que havíamos deixado há pouco menos de uma hora.
A multidão era mais compacta e o clamor se tornava sedicioso;
ameaçava-se a Pôncio, pedia-se que eu lhes fosse imediatamente
entregue. Havendo conseguido um pouco de silêncio, Pôncio pronunciou estas palavras:
"Este homem, cuja morte vós pedis, é um justo."
"Não tereis de mim um decreto afirmativo em nome do imperador.
O sangue inocente que estais para derramar, caia sobre vós; lavo minhas
mãos por tudo o que suceder."
E Pôncio Pilatos fez derramar água sobre suas mãos em presença do
povo que redobrou em vociferações. Pôncio entrou novamente em seus
aposentos. A pessoa encarregada de dirigir os preparativos das
execuções perguntou ao povo qual dos quatro delinqüentes, cuja morte
estava marcada para esse dia, queria que se lhe concedesse graça de
acordo com o costume.
"Não a nosso rei,
exclamou a multidão; libertai aquele, dentre
os três restantes, que mais vos agrade."
Entretanto, como entre esses três se encontrava um ladrão e
assassino dos mais perigosos, e perfeitamente conhecido, tiveram a
idéia de opor-nos um ao outro; para despertar, se ainda existisse nesse
povo, um sentimento de justiça. Pois bem. O povo condenou-me uma vez
mais ainda!
Desde esse momento fui convertido em joguete de uma
multidão insensata e os
soldados, encarregados de minha custódia,
uniram-se ao populacho.
Sobre minha cabeça foi colocada uma coroa de
espinhos, sobre meus ombros um pano de cor escarlate (isto passou-se em
um dos pátios do pretório), e todos se inclinavam diante de mim
dizendo: "Saúdo-te, Rei dos hebreus."
Muitos me bateram,
um
cuspiu-me no rosto.
Ao cabo de
duas horas de diversões abjetas e
cruéis me despiram de minhas vestes e sobre meu corpo,
completamente
nu, aplicou-se a tortura da
flagelação. Duas lágrimas me queimaram
as faces. Foram as últimas. Era meio-dia quando cheguei ao
Gólgota.
Minhas forças estavam exaustas e não me haviam permitido levar o
instrumento de meu suplício, que era um tronco de árvore, dividido e
ajustado em forma de cruz, e eu mal podia
suster-me em pé, quando meu corpo desnudo
foi exposto às zombarias
mais ignóbeis da mais asquerosa plebe. Mas desta vez, pelo menos, meu
espírito, concentrado em radiantes perspectivas, perdia de vista os
homens e suas espantosas demências. Meus pensamentos sobre a cruz
tiveram principalmente por objetivo os autores de meu martírio, os
ingratos e os fracos, e exclamei:
"Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem!"
Meus sofrimentos sobre a cruz foram a causa da fraqueza do espírito,
e disse:
"Meu Pai: Por que me abandonaste?"
Minha consolação sobre a cruz foram a recordação de meus amigos,
minha confiança em suas promessas. Divisando minhas santas companheiras
e minha mãe protegida e amparada no meio delas, Tiago, o digno irmão
da heróica Maria, Marcos, Pedro, os dois filhos de Salomé, abençoei
os arrependidos e, mais do que nunca, acreditei na inquebrantável
fidelidade futura de todos. Continuavam injuriando-me sempre... Um
letreiro com estas palavras: Eis o Rei dos judeus!
foi colocado sobre
minha cabeça. Dois delinqüentes sofriam a meu lado o mesmo
suplício;
porém, contrariamente ao que se diz, eles não me insultaram. Os
soldados que me haviam crucificado repartiam minhas vestes entre si e
lúgubres gracejadores dirigiam-me palavras como estas:
"Desce da cruz e acreditaremos na tua divindade. "Chama teu
pai para que venha libertar-te e pronuncia nossa condenação
fazendo-nos morrer antes que tu. "Dá-nos um cartão de entrada,
Jesus, a fim de que nos seja concedido gozar de teu triunfo no reino de
teu Pai."
Meus olhos se nublaram: uma opressão mais violenta que as outras me
confundiu e adormeci nas trevas humanas para despertar no seio das luminosidades divinas.
Eram mais ou menos três
horas.
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FIM
DO CAPÍTULO 15