Irmãos
meus: Minha permanência em
Jerusalém durante seis anos consecutivos põe a descoberto os preparativos de minha
missão.
Aos
vinte e nove anos saí de Jerusalém para tornar-me conhecido nas
povoações circunvizinhas. Minhas primeiras tentativas em Nazareth não
foram coroadas pelo êxito. Dali me dirigi a Damasco, onde fui bem acolhido.
Parecia-me necessária uma grande distância de Jerusalém para desviar de mim a
atenção dos sacerdotes e dos agitadores daquela cidade. Os sacerdotes já
tinham principiado a fitar-me demasiadamente; os segundos me conheciam de
há muito tempo e eu tinha que evitar as perseguições nesses momentos e
abandonar toda a participação nas turbulências populares.
Em
Damasco não tive aborrecimentos por parte das autoridades governativas
nem por parte dos elementos de discórdia, que se infiltram com. freqüência
no seio das massas, e menos ainda pela indiferença de meus
ouvintes. Felicitado e temido como um profeta, levei daí a lembrança de
um pouco de bem espalhado em parte com minhas instruções gerais e em
parte com os conselhos de aplicação pessoal para as situações de maus
consulentes. Abandonei essa cidade na metade do verão e me dirigi para
outro centro de população. (Cidade de Tiro)
Estudei
antes de tudo a religião e os costumes dos habitantes e pude convencer-me
que a religião pagã, professada pelo Estado, fazia devotos
verdadeiros. Os homens dedicados ao comércio não eram nada escrupulosos
em matéria religiosa. As mulheres, ignorantes e dominadas pelo louco
apego ao corpo, consumiam sua existência na triste e degradante
escravidão do luxo e da degradação moral. Os sacerdotes ensinaram o
dogma da pluralidade dos deuses. Diversos sábios pregavam sofismas,
inculcando a existência de uma Divindade superior que tinha outras
inferiores sob sua dependência. Alguns discípulos de Pitágoras
humilhavam a natureza humana no porvir, condenando-a a entrar no corpo de
um animal qualquer. Alguns honravam a terra como o único mundo e outros
compreendiam a majestade do Universo povoado de mundos. Havia os que
divagavam no campo das suposições e os que ensinavam a moral baseando-se
na imortalidade da alma, cuja origem divina sustentavam. Havia homens
condenados fatalmente para o embrutecimento da humanidade, fazendo
predições e anunciando oráculos. Havia, enfim, homens que adoravam o
Sol como o rei da natureza e o benfeitor de tudo o que existe.
Querendo
dar um desmentido à maior parte destas crença, tive de limitar-me, a
princípio, ao ensinamento da adoção de um só Deus e do cumprimento dos
deveres fraternos. Mas, graças aos protetores de que pude rodear-me entre
os interessados em sacudir o jugo dos sacerdotes, bem depressa me
encontrei em magníficas condições para ensinar a doutrina da vida
futura. Compenetrado da alta proteção de Deus, minhas palavras levavam a
força de minha convicção. Longe de minha pátria e pobre, era
procurado pelos homens de boa vontade e as mulheres, as crianças e os
velhos disputavam a honra de servir-me e de conversar comigo. Um dia em
que o calor tinha sido sufocante, achava-me sentado, depois do pôr do
sol, diante de uma casa em que tinha pernoitado. Densas nuvens corriam
para o oeste; aproximava-se o furacão e a gente retardatária passava
estugando o passo para chegar às suas casas. Como sempre, eu estava
rodeado de crianças e mulheres, e os homens, um pouco mais distanciados,
esperavam que a chuva, de que caiam já algumas gotas, me obrigasse a
entrar na casa. A natureza em luta com os elementos, apresentou diante de
meu espírito a seguinte observação :
"Em
tudo se manifesta a bondade de Deus e os homens terão que compreender os
deveres que lhes impõe o título de Senhores da Terra, com o qual se
enfeitam, aproveitando-se das lições que lhes proporciona o Senhor do
Universo".
"Compenetrai-vos,
irmãos meus, da tempestade que se levanta em vossos corações quando as
paixões os invadem, comparando-a com os esforços da tempestade, que aqui
se está preparando".
"Os
mesmos fenômenos se põem em evidência. A mão soberana de Deus é a
dispensadora dos dons do aviso, assim como o testemunho das
culpas".
"A
tempestade muito depressa se desencadeará. Aonde estão os pássaros do
céu e os insetos da terra? - Ao abrigo da tempestade, a respeito da qual
a divina providência os preveniu.
"Ai
dos imprudentes e dos orgulhosos que se descuidaram do aviso para
adormecerem na indolência e desafiar as leis da destruição! Serão
atirados para longe pelo sopro do furacão.
"A
tempestade que surge em vossos corações, irmãos meus, anuncia-se com a
necessidade de prazeres ilícitos ou degradantes para vossos espíritos.
Aonde se encontram os homens fracos ou os homens orgulhosos depois do
desafogo de suas paixões? - No lugar maldito em que a tristeza do
espírito é uma expiação de sua loucura.
"A
serenidade do céu, irmãos meus, é a imagem de vossas almas, quando se
encontram livres das negras preocupações da vida. O furacão seguido da
plácida harmonia dos elementos é a do homem vencedor de suas paixões.
"Irmãos
meus, o furacão tudo estremece, ameaçador... porém, bendigamos a
divina providência! - os pássaros do céu se encontram abrigados.
As paixões vos atraem, o furacão está próximo, a tempestade se
prepara, mas vós estais advertidos e saireis vitoriosos".
A
voz de uma jovenzinha respondeu à minha voz:
"Sê
bendito tu, Jesus, ó profeta, que demonstras a bondade de Deus e que
derramas a doçura e esperança em nossos corações".
A
familiaridade de minhas conversações permitia estas formas de
admiração, ao mesmo tempo que favorecia freqüentemente as perguntas que
se me faziam com um fim pessoal.
Um
instante depois o furacão se desencadeava com todo o seu furor.
Ficaram-me
recordações claras de minhas emoções do tempo em que vivi no meio
desse povo, tão diferente dos povos que visitei depois, e não há
exemplo dos perigos que só com habilidade evitei ali.
Em
todas as partes o Messias, filho de Deus, se anunciava com palavras
severas, dirigindo-se aos ricos e poderosos; em todas as partes o filho de
Deus era insultado e desprezado pelos que ele acusava; porém, aí as
preocupações e a paciência de Jesus lhe valeram o amor sem limites do
povo e o apoio dos grandes.
Toda
a perspicácia de Jesus foi posta em jogo nessa cidade famosa e dos gozos
mundanos, no centro dos prazeres e do luxo mais desenfreado, na parte do
mundo mais exercitada nas transações, nas trocas, e demais minuciosos
detalhes comerciais. Jamais Jesus despendeu tanta habilidade e se fez
estimado de tanta gente como ali. Jamais o apóstolo foi escutado com tão
grande atenção como por esses pagãos de espírito frívolo e submerso
nos hábitos de uma existência alegre e amena.
O
triste objetivo de Jesus, humanamente falando, data tão somente do dia em
que abandonou os povos distantes para dirigir-se unicamente às
populações hebréias, sempre obstinadas em desmenti-lo. Poucos são os
homens que têm a coragem de aceitar opiniões que choquem com as da
maioria. A maioria dos hebreus acreditava que a autoridade do dogma
descansava sobre a autoridade de Deus e que pregar a majestade de Deus
independentemente dos vínculos que lhe havia legado a ignorância dos
povos bárbaros, era profanar o culto estabelecido, fazendo-o experimentar
modificações humanas, desaprovadas por Deus, autor do mesmo culto.
Depois da purificação de minha vida terrestre e do caminho percorrido
nas honras espirituais, eu desço com alegria para narrar-vos esta vida
quando minhas recordações já se encontram desembaraçadas da
ingratidão humana, e participo de uma forma mais ampla dos males da
totalidade dos seres, quando repouso no afeto de alguns deles.
Afastemos,
pois, irmãos meus, o que me separa dos dias que passei no meio desse
povo, alegremos ainda minha alma com a lembrança da multidão que me
rodeava com tão respeitosa ternura e não antecipemos os dolorosos
acontecimentos que principiaram a suceder com a minha saída dessa
cidade.
Daqui
por diante me encontrareis nesta história como Apóstolo, pregando o
reino de Deus, pastor que reúne seu rebanho, professor que catequiza seus
alunos. Nessa cidade em compensação eu era o amigo, o irmão, o profeta
abençoado e consolador. Os ricos como os pobres, os ociosos como os
trabalhadores, vinham a mim e me acumulavam de amor. Demoremo-nos por um
momento ainda aí, irmãos meus, e escutai o doloroso relato da morte
de uma jovem. Eu não a ressuscitei, porém fiz brotar na
alma dos que a choravam, a fé na ressurreição e a esperança de
tornarem-se a encontrar. Consolei o pai e a mãe, fazendo-lhes
compreender a loucura dos que choram pela vida humana ante a suntuosidade
da vida espiritual. Incuti em todos os que se encontravam presentes o
pensamento do significado de predileção por parte de Deus para com os
espíritos que ele chama para si, na infância ou adolescência, desta
penosa estação de nosso destino. Meus amigos mostraram-se ávidos de
escutar as demonstrações da natureza humana e da morte, principalmente
desta, que deixava em suas almas uma impressão tão dolorosa que
destruí-la, rodeando-a de uma auréola de luz, era como que atear uma
chama no meio das mais densas trevas e dar movimento a um cadáver. Para
as imaginações ardentes e para os caracteres volúveis não convém
chamar a atenção sobre um ponto, senão quando este ponto toma grandes
proporções, devido à atualidade dos acontecimentos. Escolhia meus
exemplos nos fatos presentes e jamais meus discursos foram
preparados com antecipação para esses homens, fáceis de
comoverem-se, porém difíceis de serem dominados pela atração de uma
ciência privada da excitação dos sentidos.
Ao
aproximar-se a morte desta menina, o pai veio buscar-me em meio da
multidão e me arrastou até sua casa.
Já
o frio da morte invadia as extremidades e a natureza tinha abandonado toda
a luta. O rosto exaurido revelava um mal profundo e os olhos não viam...
a vida fugia pouco a pouco. O silêncio da câmara mortuária só era
interrompido pelos gemidos, entre cujo murmúrio de extrema tristeza se
confundiam os últimos suspiros da jovenzinha. Aproximei-me então da
morta e, passando-lhe a mão pela fronte, chamei-a três vezes com a voz
de um inspirado. Nesta evocação não tinha a menor idéia de
chamá-la à vida. Os presentes não eram vítimas de uma culposa
maquinação, posto que meus atos não podiam significar outra coisa a
seus olhos senão esforços para convencê-los da vida espiritual.
Voltei-me em seguida para o pai com a alegria de um mensageiro divino:
"Tua filha não morreu, lhe disse. Ela vos espera na
pátria
dos espíritos e a tranqüila esperança de sua alma irradia no
aspecto deste rosto cálido ainda pelo contacto da alma. Ela
experimentou nestes momentos o efeito das inexoráveis leis da
natureza, mas a força divina a reanimou e levanta o véu que vos
oculta no horizonte.
.........................................................................................................................................
"Oh, meu Pai, consola-te! - A alegria
me
inunda, a luz me deslumbra a doce paz me envolve e Deus me sorri.
"Meu Pai! - Os prados adornam-se de flores, o
esplendor do sol as inclina e murcha, porém o rócio as reanima e a noite devolve-lhe a frescura.
"Meu Pai! - Tua filha
murchou pelos sóis da terra, porém o rócio do Senhor
transformou-a e a noite da morte devolve-ta brilhante e forte.
"Meu Pai! - A mesma alegria te será concedida se repetires e
praticares os ensinamentos de minha mãe. Tu és o pobre
depositário dos dias maus; eu em troca sou a privilegiada do
Senhor, posto que não merecia sofrer por mais tempo sendo que a
Providência distribui a cada um as provações e as alegrias
segundo seus méritos".
A infeliz mãe estava ajoelhada na
parte mais escura do quarto. As pessoas da família a rodeavam e ao
aproximar-me afastaram-se.
"Mulher, levanta-te! disse-lhe com
autoridade. Tua filha está cheia de vida e te chama".
"Não
creias nestes sacerdotes que te falam de separação e de
escravidão, de noites e de sombras. A luz encontra-se sempre onde
quer que chegue a juventude pura e coroada de ternura filial".
"A liberdade se encontra na morte. Tua filha é
livre, grande, feliz. Ela te seguirá de perto na vida para dar-te a fé e a
esperança. Dirá a teu coração as palavras mais apropriadas para
dar-lhe calor, dará a conhecer à tua alma a reunião e o doce
abraçar-se das almas. Far-te-á conhecer o verdadeiro Deus e caminharás guiada pela luz da
imortalidade".
"Homens
que me escutais, vós todos que desejais a morte em melo da adversidade e
que a esqueceis em melo dos prazeres e dos favores terrestres,
aproximai-vos deste cadáver, o espírito que o animou curvará sua
cabeça sobre as vossas e o consolo, a forca e a esperança descerão
sobre vós.
"Pai
e mãe, declarai publicamente a felicidade de vossa filha elevando preces
ao Deus de Jesus. Deus, meu querido pai, manda a este pai e a esta mãe a
prova do teu poder e do teu amor".
Todos
os olhares tinham se fixado sobre a morta e a pobre mãe se havia
adiantado como que para receber uma resposta desses lábios para sempre
fechados... O último raio de sol que declinava sobre o leito mortuário e
as carnes descoloridas tomavam uma aparência de vida sob esse raio
passageiro. O louro cabelo encaracolado formava uma moldura ao redor do
rosto da menina e o calor da atmosfera fazia parecer brilhante e agitada
essa cabeleira enrolada e úmida, diante da morta. A penosa emoção dos
presentes havia-se convertido em êxtase. Eles pediam a vida real à morte
aparente e a grandeza do espetáculo inflamava suas imaginações já
bastante exaltadas; minhas palavras se converteram em condutores de
eletricidade e a gente que enchia o aposento caiu de joelhos gritando:
Milagre!
Tinham
visto a morta abrir os olhos e sorrir à mãe. Tinham visto agitarem-se os
cabelos com o movimento da cabeça, e a razão sucumbindo em sua luta com
a paixão do maravilhoso, engrandeceu a minha personalidade naquele
momento com intensas manifestações de admiração.
O
milagre da ressurreição momentânea da jovem ficou estabelecido
com a espontaneidade do entusiasmo, e o profeta, levado triunfo, acreditou
obedecer a Deus não desmentindo a origem de seus próximos
sucessos.
Pude,
desse dia em diante, falar com tanta autoridade, que os sacerdotes
se ressentiram afinal e tive de decidir-me a partir. ....
.............................................................................................................................................................
Comecemos
a ocupar-nos, irmãos meus, da preparação de minha primeira entrevista
com João alcunhado O Solitário por seus contemporâneos e que os homens
da posteridade converteram em um batizador. As aparências de João
eram realmente as de um batizador, posto que a mim também me batizou
nas águas do Jordão, segundo dizem os historiadores.
Tenho
que esclarecer alguns fatos que têm permanecido obscuro por erro dos
primeiros corruptores da verdade.
João
era filho de Ana, filha de Zacarias e de Facega, homem da cidade de Jafa.
(João era um ano mais velho que Jesus) Ele era o "Grande Espírito",
o piedoso solitário, que era distinguido pelo geral afeto, e os homens
tiveram razão em fazer dele um Santo, porque esta palavra resume
para eles toda a perfeição. Pregava o batismo da penitência e a
ablucão das almas nas águas espirituais. Havia chegado ao ápice da
ciência divina e sofria pela inferioridade dos homens que o rodeavam.
Não tinha nada de fanático e a severidade para consigo mesmo o põe a
salvo das críticas que poderiam fazer-se-lhe, pela austeridade de seus
discursos. A fé ardente que o devorava, comunicava a todas as suas
imagens a aparência de realidade e permanecia isolado dos prazeres do
século, cujas vergonhas analisava com paixão. A superabundância da
expressão, a hábil escolha das comparações, a força de seus
argumentos colocavam João em primeiro plano entre os oradores de então.
Mas a desgraçada humanidade que o rodeava, levava-o a excessos de
linguagem, a terríveis maldições e fanatizava cada vez mais aquele
homem forte que compreendia a perfeição do sacrifício.
Homens
de hoje, vós estais desejosos das honras das massas. João o estava das
honras divinas. Vós ambicionais as demonstrações efervescentes, ó
homens afortunados e encarregados por Deus para honrar as qualidades do
espírito e a virtude do coração; ele ambicionava somente as
demonstrações espirituais e o amor divino. Vós dais pouco valor à
moralidade dos atos quando a suntuosidade externa fala por vós diante dos
homens; ele desprezava a opinião humana e não desejava senão a
aprovação divina. João habitava uma parte do ano nos lugares mais
agrestes e os poucos discípulos que o acompanhavam proviam as suas
necessidades. Frutas, raízes e leite constituíam o alimento destes
homens e roupas de lã grosseira os defendiam da umidade e dos ralos
solares. João se dedicava na solidão a trabalhos encomiásticos e os que
o seguiam eram honrados com suas admiráveis conversações. Ele meditava
sobre a generosa bondade das leis da natureza e deplorava a cegueira
humana. Transportava-se dos exercícios de apaixonada devoção à
descrição das alegrias temporais, para os homens sãos de espírito e de
coração, e o quadro da felicidade doméstica era descrito por esses
lábios austeros com doces palavras e delicadas imagens. O piedoso
cenobita coordenava os sentimentos humanos e gozava com as evocações de
seu pensamento, quando se encontrava longe das multidões. O melodioso
artista poetizava então os sentimentos humanos e o amor divino
emprestava-lhe a inspiração. Porém no centro das humanas
paixões o fogoso atleta, o apóstolo devotado à causa e aos princípios
religiosos demonstrava-se irritado e desdobrava o esplendor de seu gênio
para abater o vício e flagelar a impostura. No deserto, João repousava
com Deus e ali via-se o homem com suas íntimas aspirações; na cidade
ele lutava com o homem e não tinha tempo de conversar com os espíritos
de paz e de mansidão. A principal virtude de João era a energia. A
força de vontade levava-o ao desprezo das grandezas e ao olvido dos gozos
materiais; guiava-o no estudo dos direitos da criatura e na meditação
dos atributos de Deus; fazia-o considerar o abuso dos prazeres como uma
loucura e o sábio domínio sobre as paixões como uma coisa bem simples.
A coragem se encontrava nele e a justiça era o apanágio de sua alma. A
elevada esperança das alegrias celestes o atraía para ideais
contemplações e a aspiração para o infinito enchia-o de desejos... Ele
não compreendia e não podia compreender a fraqueza e as atrações
mundanas. Fazia da grandeza de Deus a delícia de seu espírito e a terra
parecia-lhe um lugar de desterro no qual tinha a seu cuidado as
almas.
"Outro
virá depois de mim, dizia ele, e lançará o anátema e a reprovação
sobre vossas cabeças, ó judeus endurecidos no pecado, ó pagãos ferozes
e impuros, crianças atacadas de lepra antes de nascer... e vós, grandes
da terra, tremei! A justiça de Deus está próxima".
A
fraude e a depravação dos costumes João atacava-as com frenesi, e a
marcha dos acontecimentos demonstrou que ele não respeitava as cabeças
coroadas mais que aos homens de condição inferior.
A
centelha de sua voz potente ia buscar a indignidade no palácio e revelava
o delito faustosamente rodeado. As plagas da ignorância, as orgias da
pobreza encontravam-no com uma compaixão exasperada, que se manifestava
com a abundância da palavra e com a dureza da expressão.
João
pedia o batismo de fogo da penitência e queria o estigma da expiação.
Pregava, é certo, o consolo da fé; mas era inexorável com o pecador que
morria sem haver humilhado seus últimos dias nas cinzas de seus pecados.
Ele permanecia uma parte do ano na cidade e a outra no deserto. Já vos
dei a conhecer a diferença de humor que se manifestava nele por efeito
destas mudanças. Resta-me descrever as abluções e as imersões gerais
no Jordão. Os judeus escolhiam para estas abluções parciais e para as
imersões totais um rio ou um canal, e as leis da higiene eles as
associavam com as da religião. O Jordão, na estação do calor, via
correr para suas margens multidões inumeráveis, e João descia do
deserto para fazer escutar por essas gentes seus
discursos graves e ungidos.
Sua
palavra tinha então esse caráter de doçura que ele adquiria sempre na
solidão, e sua reputação aumentava o interesse das povoações
circunvizinhas por praticar as imersões no Jordão.
João
recomendava o dever da penitência e da mudança de conduta depois da
observância do antigo costume e estabelecia que a penitência devia ser
uma renovação do batismo.
Com
freqüência ele pregava :
"Da
vossa lavagem corporal deduzi vossa lavagem espiritual e fazei submergir
vossas almas na água da fonte sagrada. O corpo é infinitamente menos
precioso que o espírito e, apesar disso, vós nada descuidais para
tratá-lo e embelecê-lo, ao passo que abandonais o espírito na
imundícia das manchas do mal, da perdição e da morte.
"Da
pureza de vosso coração, da brancura de vossa alma fazei maior caso e
tapai os ouvidos às vãs honras do mundo.
"Ressuscitai vosso
espírito mediante a purificação ao mesmo tempo que conservais
vosso corpo são e robusto com os cuidados higiênicos".
João
falará, ele mesmo, no quarto capítulo deste livro e descreverá nosso
primeiro encontro, que teve lugar em Bethabara.
___________________________