Irmãos
meus, o título de filho de Deus elevava minha missão, purificando
minha personalidade humana no presente e assegurava minha doutrina para
o porvir. Com este título de filho de Deus eu renunciava a todas as
honras, a todas as ambições da Terra e meu espírito tinha que sair
vitorioso em suas lutas com a natureza carnal. O título de filho de
Deus havia de converter-se em um meio de prestígio para dominar as
massas, enquanto que poderia depois explicá-lo oportunamente aos homens
mais iluminados. Dito prestígio me proporcionaria a possibilidade de
ampliar meus alicerces e de assegurá-los.
Preocupava-me sobretudo a posteridade e seu acolhimento parecia-me
depender da fé que eu lhe chegaria a inspirar, considerando-se a minha
luz como um reflexo da luz celeste.
Contudo,
a solidão suscitava às vezes dúvidas e temores em meu espírito e eu
me interrogava a mim mesmo então se consistiria realmente em tudo
aquilo o objetivo de minha vida. Espíritos perversos haver-me-iam
talvez impelido por um falso caminho? - Seria frutífero o sacrifício
de minha tranqüilidade e de minhas alegrias humanas? - Ou meu poder de
filho de Deus se despenharia miseravelmente ao solo? - Indecisões
fatais, vós pondes em prova a fraqueza do espírito quando se encontra
envolto na natureza corporal! (1)
Jerusalém
parecia-me lugar pouco favorável para implantar minha doutrina.
Porém
antes de deixá-la eu queria experimentar minhas forças e pôr em
prática meus meios de ação sobre a multidão; apresentei-me, pois, no
templo rodeado de meus fiéis sequazes.
Era costume que todo homem de
alguma fama tomasse aí a palavra, cousa que eu tinha feito muitas
vezes. Mas devo confessar que a eloqüência sagrada me era difícil, e
que em todos os meus discursos minha fraqueza se fazia evidente, pela
luta que se estabelecia entre minha natureza física e o desejo veemente
de manifestar meu pensamento. Os olhares que se fixavam em mim, muito de
perto, e as interrupções freqüentes, eram suficientes para perturbar
meus sentidos e desviar minha memória. Via-me então lançado em certa
desordem de idéias e desenvolvia teorias alheias ao tema que
primitivamente me havia proposto. Se bem tenha eu vencido
mais tarde esta dificuldade, é digno de notar-se que aquele defeito
dominava sempre em mim. Mas nesse dia devia preocupar- me muito das
aparências. Do efeito que devia produzir diante de pessoas dispostas a
causar-me dano e diante de outras prontas a crer em mim, a seguir-me e a
defender-me.
Tomei como tema de minha conferência o seguinte:
"A
Majestade Divina em permanente emanação com suas obras", e me
constituí em negador da eterna vingança de meu Pai amado.
O terror da
gente, que até então me havia tido por um extravagante, cujas máximas
não podiam inspirar apreensões, chegou ao cúmulo.
A maior parte dos
ouvintes pendia de meus lábios quando desenvolvi a idéia da
correlação dos espíritos de Deus na habitação passageira do homem.
Falando a respeito de minha filiação divina, com a ciência das honras
de Deus para a criatura, vim colocar-me à frente dos reformadores de
todos os tempos e como o precursor de um porvir de paz e de luz. Nessa
filiação a favor de um só se encerravam promessas para a humanidade
inteira, porquanto, se bem que eu me atribuía a honra dessa filiação,
acrescentava que todos os homens adquiririam a mesma honra. Depois,
chegando ao último juízo, eu disse: "Deus virá sobre uma nuvem
acompanhado de seu filho e dirá aos justos: "Aproximai-vos de mim,
e dirá aos réprobos: Apartai-vos de mim, permanecei no inferno até à
purificação de vossas vidas".
Era a vez primeira que alguém se
atrevia a admitir a purificação no inferno e a estranheza de meus
ouvintes deu lugar a repetidas objeções, às quais eu respondia
desenvolvendo minhas doutrinas. Minha presença ao lado de Deus foi
interpretada como uma explosão imaginativa, o que aceitei.
A pregação
nesse tempo, irmãos meus, não impunha essa atenção muda e respeitosa
como atualmente. A má-fé do orador denunciava-se por sua indecisão ao
responder às objeções dos ouvintes, e a paciência destes em escutar
as demonstrações sábias e religiosas era uma prova do trabalho de
seus espíritos que buscavam compreender os preceitos e a moral que
deles resulta.
A maior parte dos homens que estavam presentes, nesse
dia, às manifestações de meu pensamento, opinaram que eu era uma
pessoa muito excêntrica, e que minhas palavras encerravam o
anúncio
de uma missão divina. Mas uma minoria de meus ouvintes interpretou meus
propósitos como um atentado ao culto que se devia a Deus, e classificou
de rebelião minha resolução de esfacelar as antigas crenças.
Saí do
templo aclamado pela multidão, mas não se me ocultaram os olhares de
ódio e as ameaças dos que já se haviam declarado meus inimigos. Ao
tornar a entrar fui aclamado freneticamente, ficando nesse momento
equilibrado por meus fiéis o poder dos sacerdotes. Creio que, se meus
perseguidores houvessem demonstrado naquele momento suas intenções, e
tivessem posto em prática a primeira parte de seu programa, minha
personalidade se teria colocado imediatamente a uma altura inacessível
para os assaltos e para as falsas interpretações daqueles que queriam
obscurecer minha fama, quer seja intentando divinizar uma criatura ou
combatendo grosseiramente o duplo sentido com a injúria ou ainda
sustentando a impiedade ao negar o caráter divino de minha mensagem.
Separei-me dessa multidão que talvez me houvesse aturdido, porém
repito que, se tivesse permanecido por mais tempo em
Jerusalém, haveria
persistido o entusiasmo de meus aliados, e a impotência dos meus
inimigos. A mesma forma de morte haveria terminado minha vida,
na mesma época,
porém, quantos trabalhos se teriam realizado, quantos
discípulos inteligentes se teriam reunido, quanta ressonância e que
resultados seriam conseguidos! Irmãos meus - peçamos a Deus o advento
dessa religião universal tão esperada, que fará resplandecer Deus e a
sua providência, Deus e o seu amor!
A natureza humana é viciosa porque
o homem nasce da lubricidade. Mas, passando pelas provas da carne, o
homem desliga-se desta natureza pela força de sua vontade, e achando-se
o sentimento humano subordinado ao sentimento religioso o espírito
adquire o desenvolvimento que o aproxima à pura essência de Deus.
Trabalhai neste desenvolvimento, irmãos meus, a sublime religião de
Deus vô-lo recomenda.
Eu sou o anjo de vida e digo:
"A
vida é eterna, os sofrimentos apenas duram poucos dias; sofrei com
coragem, a sublime religião de Deus vô-lo recomenda".
Eu
sou o espírito de luz e digo:
"A
alegria inundará aos que tenham caminhado na luz".
Irmãos
meus, a sublime religião de Deus vos ordena demonstrar vossa fé,
aspirando o ar da liberdade de vossa alma; adornar vosso espírito,
buscando o caminho da verdadeira felicidade, humilhar vosso corpo,
cansando-o com o exercício da caridade, privando-o das honras faustosas e
dos gozos grosseiros, elevando-o acima dos instintos da natureza animal no
que esta tem de mais feroz e asqueroso. Pedi à luz a verdade do porvir
que está muito acima das mentiras e loucuras da terra. Pedi e recebereis,
irmãos meus, porque eu sou o espírito de luz e vos amo.
- Purificai
vossa natureza carnal, ó vós que quereis entrar em comunicação com os
espíritos puros; pedi luz à ciência de Deus, ó vós que desejais viver
e morrer na paz e no amor!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Parti
de Jerusalém com destino a Cafarnaum, cidade situada à margem do lago de
Tiberíades e quase completamente habitada por pescadores,
negociantes e
empregados do governo.
Cafarnaum pareceu-me de tal maneira adaptada para
meus fins de proselitismo, que desde o primeiro momento fiz dessa cidade o
centro de minha ação e da esperança de minha vida de apóstolo.
Os
pescadores de Cafarnaum eram-me simpáticos por sua alegria franca e
honrada. Os negociantes me pareciam restos de povos diversos atirados para
ali talvez por um capricho da sorte, e os oficiais do governo davam-me a
impressão de testemunhas, felizmente colocados ali para proteção de um
homem, cujos discursos iriam mais além que o permitido pelo Estado.
A
medíocre fortuna dos mais ricos de Cafarnaum assegurava-me um tranqüilo
ascendente tanto sobre as classes pobres quanto sobre as mais favorecidas.
Os costumes simples e as limitadas ambições favoreciam o engrandecimento
do círculo de meus ouvintes e meu poder como Filho de Deus se estabeleceria
nos corações dos fiéis depositários de minha palavra com maior
tenacidade que em nenhuma outra parte.
O benévolo acolhimento que me foi
dispensado em Cafarnaum tinha seus motivos nas recomendações de meus
amigos de Jerusalém. Meus primeiros protetores foram aqui, estes também,
meus primeiros discípulos, e minhas tarefas foram das mais fáceis a
princípio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Façamos
por merecer, queridos irmãos, com esforços elevados e com o terno
reconhecimento dos nossos corações, que Deus nos aplaine os caminhos
abertos diante de nosso espírito para levá-lo ao apogeu da ciência e da
prudência, porém jamais digamos que a providência nos conduz; não
afirmemos que nossos passos estão assinalados e que tal espírito é
guiado portal espírito. Não, a justiça de Deus é mais elevada e todos
os homens têm direito à sua misericórdia.
Que gênero de aliança com
os espíritos de Deus quereis irmãos meus, que engendre vossas alegrias
se vós não a mereceis com o ardor e a perseverança de vossas
resoluções? - Que manifestações podeis esperar de Deus
se entre vós
não reinar a concórdia e a justiça? - De quantos erros, em troca, e de
quantas mentiras não sereis vós outros o joguete se com vossa vergonhosa
vida facilitardes a aliança de vosso espírito com os espíritos
embusteiros da Humanidade mortos no opróbrio? - Desligai-vos do
erro,
desligai-vos dos amores corrompidos e a verdade vos descobrirá seus
tesouros e o amor divino manifestará seu calor à vossa alma.
Fazei os
preparativos de vossa elevação, adornai a casa em que guardais o
espírito de Deus para que ela seja digna
Dele. Atirai para o lado as
cousas malsãs e lavai as chagas por elas deixadas para que o espírito do
Senhor não se sinta repelido e se afaste. Limpai a
cabeça, limpai o
coração, limpai o
espírito, limpai a consciência e
facilitai a entrada
na habitação com ternos chamados, com firmes promessas e
com ardentes desejos. Ah! Irmãos meus:
Quanto se enganam os que crêem que o caminho
dos acontecimentos está submetido à fatalidade e
que essa
fatalidade, cujos golpes ecoam no coração do homem, fere cegamente,
inculcando à criatura a ausência de um Ser Inteligente.
Uma vez mais.
Não. A justiça de Deus existe
e para todos a fatalidade não é outra
cousa que o castigo merecido. A fatalidade respeita-vos quando vos
encontrais sob a proteção de um espírito de Deus, mas esta proteção
não se adquire sem sacrifícios e os sacrifícios são expiações. A
supremacia do mando, a servidão, a riqueza, a escravidão, são
expiações. A virtude nos reis é pouco comum, a coragem nos escravos é
pouco comum, o vigor do espírito nos deprimidos é pouco comum, a
liberalidade nos ricos é pouco comum. Entretanto, todos se livrariam da
fatalidade mediante a virtude, a coragem, a energia do espírito e a
liberalidade. Todos progrediriam no caminho do próprio melhoramento se
estivessem convencidos da justiça de Deus e das promessas da vida eterna.
A justiça de Deus a todos nós protege com o mesmo apoio e nos carrega
com igual fardo. Ela nos promete a mesma recompensa e nos humilha do mesmo
modo, nos alumia com o mesmo facho e nos abandona com o mesmo rigor. Não
preludiemos nossa decadência intelectual com a aceleração de nossos
princípios religiosos; alimentemos em troca nosso espírito com o quadro,
colocado constantemente na luz diante de nós, da infalibilidade da
Justiça Divina. Peçamos a proteção dos espíritos de
Deus, mas não
imaginemos que eles hão de proteger uns mais que os outros sem a
purificação da alma protegida.
Eu me havia desviado do meu objetivo ao
afastar-me de Jerusalém, porém remediei em parte meu erro estabelecendo-me em
Cafarnaum. Entretanto, os espíritos de Deus não me haviam guiado
nestas circunstâncias, porquanto a parte intelectual de minha obra
pertencia-me completamente. O objetivo de minha vida devia honrar-me ou
encher-me de arrependimento, e os espíritos de Deus se apartariam de mim
se minhas alegrias humanas maculassem sua pureza.
Espíritos de desordem
inspiravam-me penosas indecisões, espíritos de trevas agitavam minha
mente com dúvidas a respeito de meu destino, espíritos de orgulho faziam
resplandecer diante de meus olhos a pompa das festas mundanas e o prazer
dos amores carnais.
Perdido no meio de uma perturbação
inexprimível, levantava
os olhos ao céu com olhar esquadrinhador e, mais firme depois da prece,
lutava com coragem. Bem o sabem os que dizem: "Jesus foi transportado
sobre uma montanha e o demônio mostrou-lhe os reinos da Terra para
tentá-lo".
Irmãos meus,
o Demônio, figura alegórica do espírito
do mal, encontra-se onde quer que estejam espíritos encarnados na
matéria, e eu me encontrava entregue às ondas desse mar que se chama
Vida Humana. A lei de perdição, a lei de conservação, os gozos
materiais, os gozos espirituais disputam o espírito do homem e a vitória
coroa o espírito que soube lutar até sua completa purificação.
Eu
reprimia os instintos da natureza carnal, haurindo forças no eterno
princípio do poder da vontade, pois a luz do meu espírito só me
iluminava durante o repouso que se segue à luta, durante a calma que vem
depois da tempestade. Devido tão-somente à minha força de vontade eu
era senhor das paixões funestas para o progresso do ser e durante o
descanso de minhas forças parecia que a memória espiritual renascia em
mim; considerava então a habitação temporária do corpo como um
estreito cárcere para o espírito e o ar da liberdade anímica penetrava
em meu peito em celestes aspirações.
A facilidade que eu tinha para
descobrir as fraquezas dos homens colocava-os sob minha dependência.
Minhas palavras tomavam o caráter de revelações, quando as chagas
ficavam a descoberto, e a aparência de predições, quando a indignação
transbordava de meu peito. Meus esforços em curar se dirigiam também ao
corpo, cujos sofrimentos me era dado apreciar por alguns estudos
adquiridos a respeito. Pelo que diz respeito aos meus meios de curar,
consenti em admitir, irmãos meus, que sua virtude era puramente humana, e
deixai que meus milagres durmam em paz (2).
Estes
atiraram sobre mim essa nódoa da qual venho agora livrar-me. O Centurião
de Cafarnaum é um personagem tomado dentre os que me deveram a saúde e a
tranqüilidade. A tudo o que disseram com referência a este fato (3) eu lhe
oponho um desmentido formal, porquanto essas palavras não podiam senão
ser favoráveis à crença em minha divindade, enquanto que ninguém em
minha vida carnal me tomou por um Deus; porque
as multidões eram mantidas
por mim na adoração de um só Deus, Senhor e dispensador da
vida; porque
meu título de filho de Deus não implicava a transgressão do princípio
sobre que descansa a personalidade divina, porque a eterna lei dos mundos
coloca a morte corporal no abismo do esquecimento, entretanto o pensamento
segue o espírito no campo da imortalidade; porque
a morte é o termo
prescrito pela vontade divina, que não pode
desmentir-se; porque a
ressurreição deve estender-se tão-somente no sentido da libertação
do espírito; porque a ressurreição do corpo seria um passo para
trás,
ao passo que o espírito caminha sempre para diante. A ressurreição,
irmãos meus, jamais tem lugar, a morte nunca devolve sua
presa. A morte,
emblema da petrificação, é o aniquilamento da forma material. O
espírito que abandonou dita matéria
não se preocupa mais dela e só a
vida que se abre diante dele o cativa e o arrasta.
Jesus
não pôde ressuscitar ninguém. Tampouco foi Jesus quem curou com a
imposição das mãos (4) e com suas palavras. - Ele orou, pediu a
libertação dos enfermos e consolou os pobres, fez brotar alegrias no
coração dos aflitos e esperança na alma dos pecadores. A terna
melancolia de suas conversações atraía para junto de si os
melancólicos e às vezes sua terna alegria descarregava os mais sinistros
semblantes. Os pobres eram seus assíduos companheiros e as mulheres de
má vida corriam para ele para beber em suas palavras o olvido, a força,
a compaixão e o ânimo. A temerária ousadia do justo não arrastou
jamais Jesus para o ridículo, e, sobre a vergonha, ele estendia com
rapidez o véu radiante da purificação.
"Meu
Pai, dizia, conhece nossa fraqueza. Ele nos espera e nos chama com
carinhoso empenho. Corramos a atirar-nos em seus braços e os maiores
delitos serão perdoados.
"Meu Pai é também o vosso; minha
habitação será igualmente a vossa. Deixai pois vossos mortos e vinde
habitar com os vivos."
Com
as palavras vossos mortos
eu queria indicar os excessos e os projetos
insensatos, as desilusões e a nódoa da vida, os gozos desordenados, os
infortúnios fatais para a prosperidade material e as más influências do
amor, do ódio, do remorso e do terror, do pecado e do temor do castigo.
As alegrias inocentes devolviam o sorriso a meus lábios e as crianças
eram sempre por mim bem recebidas.
"Deixai vir a mim os
pequeninos", dizia, e tomava suas mãos entre as minhas e os enchia
de carícias. Os ódios e as discussões acalmavam-se pela virtude de meu
ascendente. Todas as rivalidades desapareciam do círculo que eu tinha
formado, e a terna simpatia das mulheres lançava sobre minha vida a
sombra protetora das mães, pelos cuidados que eram inerentes à minha
pessoa.
Eu costumava descansar em uma barca de pesca durante a
noite, das
fadigas do dia, escutando as alegres palestras de meus amigos. Os deveres
do apostolado, os ensinamentos do pastor, deixavam lugar, durante essas
horas de repouso, a expansões cheias de atrativos, de confidências e de
afetos. Os filhos me entretinham com as alegrias e tristezas próprias de
sua idade, e os pais me interrogavam a respeito das aptidões de cada um e
da posição que lhes convinha. - Que noites deliciosas nos proporcionavam
o esplendor da abóbada celeste, a transparência da água, a ânsia dos
corações, a simplicidade das almas, as preces ao Criador e a felicidade
resplandecente em meio da mediocridade e do trabalho!
Irmãos meus,
eu
bebo nestes momentos em minhas recordações, e quisera reproduzir-vos a
emoção de meus fiéis quando, de pé sobre uma
tábua, colocada através
da barca, eu lhes explicava as grandes verdades do
porvir. Assim se
terminavam com os festejos luminosos do espírito as ardentes festas do
coração, e não deixava meus amigos senão rodeado e abençoado por
eles. Minha hospedagem era na
casa de certo BarJona, pai de Cefas e de
Simão; (5) o primeiro chamado mais tarde Pedro, o segundo chamado pelos
homens André; os três eram
pescadores.
As
prerrogativas de Cefas (= Pedro) têm sua origem no carinho extraordinário que me
demonstrou desde os primeiros dias. O caráter sombrio do irmão
Simão (= André) não deu
lugar à mesma confidente expansão. Poucas fisionomias me ficaram tão
profundamente gravadas como a de Cefas. Vejo ainda a expressão dessa
careta (6) cheia de franqueza e de certa finura. Seus olhos eram azuis e
lançavam relâmpagos de inteligência, por cima dumas faces frescas e
rosadas, e seus lábios grossos sorriam freqüentemente, com o descuido
ingênuo de um alegre filho da Natureza. A cabeça de Cefas era grande,
seus cabelos abundantes e dourados, largos os ombros e elevada a estatura.
Seus movimentos, um tanto vagarosos, denunciavam reflexão. Mesmo no meio
dos trabalhos mais ativos sua fisionomia refletia com fidelidade as
emoções da alma. Quando pensei em atrair seu carinho para mim, deteve-me
com estas palavras:
"Já que a oração é eficaz quando sai de teus
lábios, Senhor, ordena aos ventos que me sejam favoráveis durante a
noite. Enche minhas redes, e eu acreditarei no Poder de tuas
palavras."
"A
oração - lhe respondi - honra a quem a eleva; pronuncia tu mesmo, amigo
meu, a fórmula de teus desejos e Deus te ouvirá se esses desejos forem a
expressão da sabedoria e das necessidades de tua vida".
Meu
pobre Cefas não estava acostumado à elevação do coração mediante a
prece e pouco depois de minha chegada se preocupava das cousas da vida
futura. A oração foi-lhe ditada por mim e na manhã seguinte em suas
horas médias (da manhã) fui me informar do resultado. Encontrei os
pescadores muito atarefados, encontrando-se já na sétima venda de pescados,
apanhados durante a noite. Receberam-me em festa e Cefas se ajoelhou
dizendo:
"Senhor! - Senhor! - Tu és certamente aquele que Deus
enviou para fazer-me paciente nas adversidades e alegre na
abundância".
Levantei Cefas e lhe disse:
6
- Poderia talvez empregar-se a palavra careta em lugar de cara? Em todo o
caso assim se encontra no texto. - Nota do Sr. Volpi.
"Somente
Deus é grande, somente Deus merece teus transportes de reconhecimento e
de amor. Tão-só Deus, forte e poderoso, distribui a abundância e as
bênçãos aos que lhe dirigem suas orações".
Retirei-me
deixando os pescadores em liberdade de entregarem-se às suas fainas. Não
faltou quem, exagerando o alcance deste
fato, favorecesse a crença nos milagres.
A religião pura e simples de Jesus não existe
mais.
Com fausto
delirante, honras tolas e frias relíquias,
caiu essa religião ao nível
das mais absurdas fábulas. As elevadas verdades ensinadas por Jesus foram
substituídas por fantasias e os fanáticos partidários de minha
Divindade arrastaram meu nome entre o lodo e o sangue, nos abomináveis
espetáculos da Inquisição e
sobre os campos de batalhas ímpias.
Pobres
mártires! - E vós, intrépidos lutadores da razão, marchai através dos
mundos! Correi em busca das verdades eternas! Ascendei sobre as sufocantes
humanidades e derramai luz sobre elas! Teus esforços e teu patrocínio
serviram para a emancipação de alguns homens, ó jovem e intrépido
atleta das arenas da inteligência! E tu em troca... morres pobre,
desejoso de viver ainda para dar termo à página começada!
A página
começada será terminada em outra parte e tu te verás libertado deste
corpo de lodo, distanciado destes estertores de morte, desiludido das
sombras, impelido para a luz infinita, saciado de amor e de liberdade!...
Decidido campeão de uma nova idéia, tu vais expiar teu delito... A morte
aí está; a morte no meio de uma multidão gritadeira e estúpida... Mas
te sustentarão os anjos em tua hora suprema e ascenderás para a luz
eterna!...
Desce, irmão meu, os últimos degraus da vida humana, eles te
conduzirão para o vestíbulo da eternidade. O túmulo abrirá para ti os
esplendores do dia e te serão reveladas as harmonias do poder criador. A
velhice de teu corpo é pesada mas a alma jovem está por sair desse
túmulo e te será dada, irmão meu, a revelação sublime do que tu tens
pressentido. Fala a teus irmãos, sê ainda útil à humanidade. Estuda,
pede a Deus a chave que abre a mansão faustosa de sua pura luz, penetra
na abóbada dos esplendorosos astros e volta à Terra para dar-lhe a prova
de teus novos descobrimentos.
A vós todos, homens pensadores e homens de ação, a vós, amigos meus,
pertence-vos a admiração dos espíritos que vos precederam. A vós
pertence-vos a força, o poder e a perseverança na palavra e nos
pensamentos de regeneração.
Na manifestação da verdade, irmãos meus,
é preciso prevenir-nos contra os excessos da indignação, para os quais
pode arremessar-nos a lembrança do passado, e convém demonstrarmo-nos
fortes perante o presente para fundar o porvir.
Eu dirijo a todos palavras
de perdão e de consolo.
Deponde as armas e amai-vos uns aos
outros. Um
só laço existe para unir a humanidade inteira: é o
amor. Não há mais
que uma porta de saída da degradação: o arrependimento,
e se na hora
derradeira o arrependimento faz curvar a cabeça do culpado, a justiça de
Deus, impregnada de sua misericórdia, inclina-se sobre essa cabeça.
A
expiação das culpas é inevitável, mas o arrependimento do pecador tira
à expiação o caráter ignominioso do castigo e o desespero da vergonha.
Irmãos meus, dou-vos a palavra de paz, dou-vos a promessa de vida e vos
abençôo.
___________
(1)
Por elevado que seja um espírito, sua atuação sobre a Terra tem que
ser forçosamente imperfeita e pobre, devendo limitar-se às
possibilidades que lhe permitem o organismo que anima e o meio em que
atua. A ele conseguem não obstante impor-se as potencialidades da alma,
de acordo com a elevação alcançada por ela: porém há de ser à
custa de uma luta tenaz, renovada pelo espírito em cada nova
encarnação, defrontando as paixões resultantes das condições da
vida animal em meio das quais tem que desenvolver-se, ligado como se
encontra a todas as suas leis e contingências. Basta esta observação
para avaliar-se a excepcional grandeza da personalidade de Jesus, ao
vê-lo proceder, constantemente, dentro do mais completo domínio de si
mesmo, com um desprendimento tal, com tal elevação de ideais e tão
profundo amor para os homens, que nada semelhante pode supor-se. Unia,
além disso, sua ação com uma admirável clarividência e uma perfeita
consciência a respeito da marcha que seguia e de suas finalidades,
repousando o todo sobre uma fé inquebrantável em Deus e no triunfo do
que em seu nome pretendia levar a termo. - Nota do Sr. Rebaudi.
(2)
Perante os homens independentes e sensatos é justamente a questão dos
milagres o que desprestigia a personalidade de Jesus. Ainda que sejam eles
ateus ou deístas não podem admitir nem ao menos a possibilidade da
violação das leis da Natureza ou de Deus. Se as leis da Natureza são
imutáveis, com mais razão devem sê-lo se as considerarmos como divinas,
porque Deus não pode deixar de ser em suas obras o que é: perfeito e o
perfeito não sofre modificações, não pode corrigir-se, não pode ser
melhor do que é. Se as leis de Deus sofressem uma transgressão da parte
dele mesmo, isto não podia ser senão no sentido do melhor,
o que implicaria que a lei não era perfeita. Por outra parte o caráter
da imutabilidade não pode separar-se jamais do da Divindade.
Cientificamente considerada a questão, é completamente inadmissível o
milagre, e o que se apresentasse como um fazedor de milagres não poderia
senão ser considerado como um desprezível charlatão. Daí vem o grande
dano que o assunto dos milagres causou a Jesus e daí vem também, sem
dúvida, prescindindo da parte que lhe corresponde à modéstia, o
esforço que ele faz para despojar de suas curas toda a idéia do
maravilhoso, colocando-as ao nível do estritamente humano. Tal fato deve
considerar-se como uma reação de parte do Mestre contra as patranhas
milagreiras espalhadas, segundo parece, por seu discípulo João, na
grandiosa atuação do fundador do Cristianismo. É bom advertir não
obstante que tudo nos induz a crer que Jesus devia estar eminentemente
dotado desses poderes psíquicos que é comum encontrarem-se nas pessoas
cuja elevação de idéias e de sentimentos, assim como santidade de vida,
as colocam nas condições de grandes iluminados e de santos, para
valemo-nos de uma palavra já consagrada pelas religiões. Jesus era por
outro lado um iniciado, como ele mesmo o diz. Tudo isto nos leva a crer
que deviam encontrar-se ao seu alcance todos os segredos da magnetoterapia
e do magnetismo transcendental e que com essas forças pôde produzir
muitos dos chamados milagres que se lhe atribuem. - Nota do Sr. Rebaudi.
(3)
Diz o Evangelho, segundo S. Mateus: Tendo, porém, entrado em Cafarnaum,
chegou-se a ele um centurião fazendo-lhe esta súplica, e dizendo:
"Senhor, o meu criado jaz em casa doente de uma paralisia, padece
muito com ela". Respondeu-lhe então Jesus: "Eu irei, e o curarei".
E, respondendo, o centurião, disse: "Senhor, eu não sou digno de
que entres na minha casa; porém manda-o só com a tua palavra, e o meu
criado será salvo. Pois também eu sou homem sujeito a outro, que tenho
soldados às minhas ordens, e digo a um: Vai acolá, e ele vai; e a outro:
Vem cá e ele vem; e ao meu servo: Faze isto, e ele o faz". E Jesus,
ouvindo-o assim falar, admirou-se, e disse para os que o seguiam: "Em
verdade vos afirmo que não achei tamanha fé em Israel. Digo-vos, porém,
que virão muitos do Oriente e do Ocidente, e que se sentarão à mesa com
Abraão, e com Isaac e Jacob no reino dos céus: Mas que os filhos do
reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger
de dentes". Então disse Jesus ao centurião: "Vai, e
faça-se-te segundo tu creste. E naquela mesma hora ficou são o
criado". (S. Mateus, VIII, v. 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.). E,
tendo chegado Jesus à casa de Pedro, viu que a sogra dele estava de cama,
e com febre; e tocou- lhe na mão, e a febre a deixou, e ela se levantou,
e se pôs a servi-los. E sobre a tarde, porém, lhe puseram diante muitos
endemoninhados: e ele com a sua palavra expelia os espíritos, e curou
todos os enfermos". (S. Mateus, cap. VIII, v. 14, 15 e 16.) Como se
vê, a forma sob que se apresenta aqui a Jesus é pouco correta. O modo do
centurião expressar-se é pouco sensato e pouco respeitoso e a atitude de
Jesus a seu respeito não é própria dele. Com razão, pois, protesta
contra o papel de fazedor de milagres que se lhe quer fazer desempenhar. -
Nota do Sr. Rebaudi.
(4)
Parece, em realidade, que Jesus não fazia uso geralmente da imposição
das mãos, senão que dirigia o pensamento, o desejo, no sentido da cura.
Por isso pode ele perfeitamente atribuir as curas a outras causas; à
ação talvez de seres extracorpóreos. - Nota do Sr. Rebaudi.
(5)
Se bem conste assim no texto, sem embargo pareceria haver-se cometido um
erro, porquanto o apóstolo Pedro é conhecido como Simão Cefas e seu
irmão, como André, assim encontra-se nos Evangelhos. - Nota do Sr.
Rebaudi.
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FIM
DO CAPÍTULO 5